Independente de acompanhar ou não o Big Brother Brasil, você fica a par do que acontece no reality show. Grande parte disso se deve à falta total de originalidade e inteligência dos veículos de comunicação na atualidade que não pautam mais, são pautados. E pior, são pautados pelo monstro que eles próprios criaram: a obsessão na vida alheia.
Nos últimos anos, sentindo a necessidade de se alinhar às pautas sociais para não perder espaço, a produção do programa tratou de absorver o “produto militância”. Com isso, conseguem matar dois coelhos em uma só cajadada: chama a atenção de uma leva que acredita que é possível fazer trabalho sério de conscientização pelos meios que sempre fizeram o contrário disso, enquanto elimina dos espaços de discussão midiática o bom senso e a seriedade das discussões sobre opressões que moldam a sociedade - coisa que sempre fizeram.
E tem dado certo. Um mar de desinformação e distorção, uma flexibilização conveniente e conivente dos assuntos mais profundos e urgentes e muitas, muitas máscaras em queda livre. Uma delas é a da harmonia e bem-querer irrestrito e espontâneo entre a negritude que foi veiculada a exaustão por jargões como “pretos e pretas estão se amando”, “nós por nós”, “ubuntu”, etc.
Essa ideia errada é tão nociva para a população negra quanto o genocídio porque mascara um problema que impacta muito em qualquer ação antirracista: o auto-ódio da negritude.
É urgente entender que o racismo em sua estrutura distorceu a autoestima, a autoimagem e o sentido de coletividade da negritude, interferindo na sua subjetividade violentamente através da exaltação de padrões de beleza e comportamentos branco/europeu. E isso pegou toda uma comunidade, mas especialmente e em cheio, o homem negro, através da via da supremacia masculina ou das relações de poder entre gênero intermediada pela raça e classe socioeconômica.
Nas relações de poder desiguais da sociedade, homem é homem. Mas, antes de tudo, homem é branco. E para os homens racializadas resta absorver as demandas do homem branco, caso queiram ser minimamente vistos como homem também.
Uma dessas demandas é alcançar as mulheres…brancas - ou ao menos tentar, enquanto rejeita veementemente as mulheres negras e/ou não brancas.
Bom exemplo disso acaba de ser visto no BBB24 com o participante negro Luigi, que não hesita em disparar ofensas contra mulheres negras, usando as mesmas injúrias que pessoas brancas usam para manifestar verbalmente o racismo, seja contra mulheres ou homens negros. Ele usou o termo racista "macaca" para se referir à participante negra Leidy Elin.
Isso não é novo. Já se aprende na infância, quando meninos negros são ridicularizados como o “namorado da neguinha” e se voltam violentamente contra meninas negras, fazendo questão de mostrar para meninos brancos que as rejeitam, seja através de violências ou distanciamento físico.
Ocorre que isso não pode ser entendido como desculpa para as violências que homens negros reproduzem contra seus pares raciais dentro da sociedade marcada pela divisão racial.
Quando a branquitude diz que “nem os próprios negros se gostam” está absolutamente correta na percepção. Mas deveria continuar o raciocínio entendendo que essa é uma das consequências do racismo na psiquê da negritude. Os próprios negros sabem disso, mas é uma das discussões “tabu” dentro da negritude. E não é uma prática que reverbera apenas na questão racial, embora o foco aqui seja esse caso do BBB24 de um homem negro ofendendo uma mulher negra, mesmo depois de ser educadamente repreendido por ela. Mas é bom observar também que os homens negros heterossexuais da casa orbitam em volta da mulher padrão da masculinidade branca. Assim como é nítido que os ataques ao seu corpo foram muito mais mobilizadores do que as ofensas sofridas pela mulher negra. Ambas são inaceitáveis, mas apenas uma se torna insuportável para a massa popular. O que vulgarmente é conhecido como palmitagem, o preterimento de mulheres negras, está se mostrando dentro do BBB como um conjunto de práticas que vai muito além das escolhas para parcerias amorosas e atravessa todas as escolhas afetivas. A mulher negra, especialmente as mais escuras, é majoritariamente vítima.
Passamos da hora de entender que não tem militância antirracista possível enquanto esse lastro da colonialidade do comportamento não for questionado e combatido com toda a força, de dentro para fora de cada pessoa negra. O educador Paulo Freire chamou isso de “subopressão”, que é quando oprimidos mimetizam o opressor e contribuem para o fortalecimento da estrutura da qual ele também é vitima.
Não existe luta antirracista unilateral. É preciso combater o racismo em todos os lugares possíveis e imagináveis, incluindo os lugares subjetivos e psíquicos da própria negritude que se rejeita de várias e recorrentes formas.
O participante Luigi manifesta comportamento supremacista contra a participante mais escura da casa. E deve responder por isso.
Não dá mais para ficar negligenciando o quanto esse tipo de comportamento contribui para a autorização de violências racistas dentro e fora da negritude.
Homens negros, expostos a humilhações diversas e vítimas diretas do genocídio do povo preto, deveriam ter mais empatia e bater de frente contra a supremacia masculina porque ela também os exclui.
E saber que quando se voltam contra mulheres negras autorizam e consubstanciam também as violências contra eles mesmos. Isso é tão óbvio.
Vamos deixar de lado a falácia da falta de letramento, porque ele não é definitivo no combate ao racismo. Muito pelo contrário. Tem racista que leu e releu manuais antirracistas justamente para saber como continuar sendo racista sem ser óbvio.
Letramento racial importa! Sim, é até bem-vindo. Mas sozinho ele não cria consciência, nem negra e nem humana. A consciência é maior que qualquer letramento. E a consciência é justamente o senso de humanidade que faz com que pessoas normais e de bom caráter enxerguem que, independente de qualquer questão política (como o racismo ou a misoginia, por exemplo), respeito é o mínimo que devemos a todo e qualquer ser humano. Isso não está nos livros, não se ensina nas escolas ou faculdades. Isso deveria estar dentro de cada um de nós.
Gosto sempre de citar uma frase do grande atleta da maior liga de basquete do mundo, Lebron James, que é a síntese dessa discrepância entre letramento e consciência, uma vez que foi dita do alto de sua percepção de mundo que veio da convivência com as mulheres de sua vida, mãe, esposa e filha: "A mulher mais desrespeitada no mundo todo é a mulher negra”.