Bianca Barclay: a antagonista humana, demasiada humana

Vilões e mocinhos também são estereótipos criados para atender as hierarquias sociais que favorecem uns e exploram outros

16 dez 2022 - 05h00
É preciso entender que Bianca Barclay não é uma vilã e, sim, a antagonista de Wandinha
É preciso entender que Bianca Barclay não é uma vilã e, sim, a antagonista de Wandinha
Foto: Reprodução/Instagram

Desde que o racismo existe, as práticas que a sustentam também estão aí, fazendo tranquilamente seu trabalho de sustentação desse método contínuo de formação, usufruto e manutenção de privilégios sociais. E vai continuar, enquanto não entendermos friamente seus meandros de existência e seus caminhos de resistência. Sim, o racismo resiste tanto quanto os que atuam na luta contra ele. Um dos seus meandros é sem dúvida um campo fértil, potente e irreversível, o psíquico. É por aqui que é possível fazer um trabalho focado na desconexão do indivíduo com a humanidade que o constitui. 

Aliás, todas as formas de opressão são executadas a partir da psique, uma vez que é o campo onde se localizam as ferramentas necessárias para formação da nossa autonomia e onde reside a chave mestra da nossa emancipação. Se debruçarmos um olhar mais criterioso, enxergamos até em grandes lideranças das lutas anti-opressão e pró-emancipação, um certo nível de deformação da subjetividade se manifestando inconscientemente, como resultado dos danos psíquicos que o racismo imprime na vida da pessoa negra. 

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Talvez seja esse o motivo que me leva gostar tanto da coadjuvante da nova série da Netflix, Wandinha, dirigida por Tim Burton e apresentada como uma espécie de spin-off da Família Addams, pois nos traz o universo da primogênita já na adolescência.

Uma pessoa negra está tão imersa na experiência do racismo vivido cotidianamente, de forma consciente ou não, que não tem tempo para as questões e questionamentos genuinamente humanos.

Essa é uma percepção que alimenta reflexões que eu tenho há tempos e, que me fez recorrer aos caminhos da psicanálise, me deparando com grandes referências no assunto, como Virgínia Bicudo e Neusa Maria Santos, por exemplo, dois expoentes dessa seara de estudos que está justamente a nossa disposição para nos amparar nessas necessidades de compreensão do oculto que reside e se manifesta em nós. 

Esquecer que acima de tudo somos pessoas, essa forma coloquial de se referir ao humano, nos causa danos irreparáveis porque nos afasta dos conflitos e complexidades que surgem desse lugar, que é único e real, uma vez que ‘raça’ é uma definição social criada por conveniência política já que, sim, somos todos humanos. Demasiados humanos. 

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E nesse demasiado cabe universos inteiros que incluem nossas luzes e nossas sombras, como bem teorizou o psicanalista Gustav Jung. Isso significa que o comportamento errante, desajustado ou inadequado às normas pré-estabelecidas (desde que não prejudique o meio em que vivemos) é um direito humano. Direito esse que ao indivíduo negro é sistematicamente negado. 

Na última semana, com a estreia da série Wandinha, que se tornou a queridinha do momento, essas questões vieram à tona. Na adaptação do clássico escrita por Al Gough e Miles Millar, temos uma abordagem mais realista da personagem, ou seja, a protagonista se distancia um pouco da ficção, focando em desvios do comportamento que são comuns a todas as pessoas. Wandinha vai seguindo com ênfase no seu lado sombrio, distante, competitivo, antipático, manipulador, permanentemente negativa diante da vida e das relações e, até da própria família, trazendo inclusive um conflito com a própria mãe. 

Até o final dessa temporada, que aparentemente pretende se desdobrar em outra, ela já se mostra ligeiramente mais afetuosa e disposta a se relacionar com o meio onde vive.  

A celeuma em torno da série ficou por conta do passado racista de Tim Burton, que em entrevistas passadas disse aos tablóides norte-americanos que o fenótipo da negritude não era adequado aos seus personagens, o que convenhamos, é uma justificativa, no mínimo, desonesta para a recorrente a ausência de negros em suas obras de grande sucesso de crítica e público. 

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Todos os apontamentos quanto a isso são justos e necessários. 

Menos no que se refere ao seu aparente recuo ou revisão de posturas discriminatórias com atrizes e atores negros. Muitos dizem que Burton estaria contribuindo para reforçar estereótipos negativos relacionados à negritude, tais como raivosos, maldosos, perigosos, ardilosos, etc. Discordo. Intencionalmente ou não, Burton com sua Wandinha nos dá um trunfo importante para incluir nas reivindicações por equidade racial, o direito da livre expressão da nossa humanidade. Ninguém tem o direito a vilania, pois isso implica necessariamente em sermos maldosos e tóxicos aos nossos meios de convivências. Mas temos direito ao erro, ao desajuste, à rejeição aos meios sociais e as pessoas que nele transitam, sobretudo aos que nos oprimem e nos diminuem ou desumanizam. Temos o direito ao distanciamento afetivo, a não sermos dóceis, cordatos e amorosos o tempo todo. Temos o direito de responder à altura as ofensas e agressões que nos direcionam. E assim é a belíssima antagonista de Wandinha, vivida pela excelente atriz Joy Sunday.

A Wandinha de Tim Burton nos dá um trunfo importante para incluir nas reivindicações por equidade racial: o direito da livre expressão da nossa humanidade
Foto: Reprodução/Netflix

Nessa série, longe de termos uma representatividade proporcional, já que temos apenas quatro personagens negros, há uma abordagem oportuna sobre no desenrolar de suas narrativas, que trazem o potencial de nos despertar para a necessidade de pleitearmos o direito a complexidade que é característica inerente da nossa condição humana.

Primeiro é preciso entender que Bianca Barclay não é uma vilã e, sim, a antagonista da Wandinha. Para quem viu a série com atenção, acompanhou duas adolescentes poderosas e influentes em disputa: Bianca pela manutenção do seu território, já que ela é a mais bonita e mais popular entre as garotas da Nevermore Academy e, Wandinha briga, à sua maneira, pela abertura de uma nova hegemonia, pois ela também tem espírito de liderança e quer impor sua personalidade. 

Errou feio quem decretou de imediato que Bianca seria uma simples menina má. 

Já o “padrão”  Lucas Wilson, vivido pelo ator Iman Marson, ensaia um vilão que se dissolve no decorrer da trama. Seu pai, o corrupto prefeito Noble Walker, tem questões conflituosas, assim como também sugere a mãe de Bianca em sua curta aparição.  

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Mas é importante pensar que estereótipos são características reais manipuladas e destacadas com objetivos escusos para justificar exclusões. Quando dizem que mulheres negras são raivosas estão jogando luz a manifestação momentânea de autodefesa diante das agressões cotidianas do racismo. Se esquecem de dizer que mulheres negras são raivosas sim, mas porque o mundo exigiu que nossa agressividade estivesse acionada o tempo todo, como prática de proteção contra os mecanismo de discriminação e violência racial e de gênero. E esquecem, principalmente, de dizer que temos o direito a sentir e manifestar essa raiva, pois isso é humano. Essa é a dinâmica de todos os estereótipos de qualquer natureza dados pelas estruturas opressoras. É preciso entender que vilões e mocinhos também são estereótipos implantados no senso comum, através de narrativas enviesadas criadas e exploradas à exaustão para atender as hierarquias sociais que favorecem uns e exploram outros. 

Em um mundo de mentalidade maniqueísta, onde somos obrigados a nos encaixar em lugares bidimensionais, ou seja, que só podemos ser uma coisa ou outra, conforme as normas pré-estabelecidas, convém propor o desvio. E esse desvio é o direito à complexidade. Independente da raça a qual pertencemos, nossa natureza humana não é estática e ambivalente, somos bons e maus a um só tempo, dependendo das necessidades em que as circunstâncias nos apresenta. 

E isso sou eu, é você, somos nós, é a Wandinha, é a Bianca Barclay e é o mundo todo.

Na ânsia de lutar contra mecanismos de opressão que nos condena, precisamos tomar cuidado para não nos colocarmos em um lugar irreal e tão limitante quanto aquele definido pelo opressor. A branquitude (grupo de pessoas brancas) criou a figura de bondade suprema, de superioridade moral natural e destinou apenas a si mesmo como mecanismo de defesa de um ego daqueles que não sabem lidar com suas sombras. Basta notar a fixação que o mundo branco tem com super heróis (quase que exclusivamente homens e brancos) e para cada super herói criado temos um vilão correspondente que é, em termos visuais, totalmente oposto à imagem dele. 

Quando não aprendemos a lidar com algo inadequado em nós, tendemos a projetar no outro, a quem é mais fácil odiar e punir. Quando em contexto político, essas dinâmicas do inconsciente se tornam mais visíveis. A branquitude antirracista deveria começar a entender sua luta a partir desse caminho, o de assumir em si a sombra que projeta no outro que é sempre não branco.

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Cabe a luta antirracista real, romper com esse maniqueísmo criado pela distorção sócio-comportamental da branquitude, e que atende de maneira tão eficiente as estruturas de opressão e entender que ele desumaniza mais do que parece. 

Na verdade, essa visão polarizada do humano sustenta as micro violências do cotidiano, uma vez que serve para exaltar de maneira ilusória uns e condenar duramente outros, em uma dinâmica social perigosa e punitivista, onde quem ganha é sempre o opressor, milimetricamente posseiro do seu lugar de superioridade desumana. 

Bianca Barclay não é uma vilã, porque vilões não existem. Existe o humano em nós que anda no meio-fio entre as luzes e sombras do nosso mundo mental e, por vezes, se deixa levar por apenas um lados de maneira passageira ou permanente. Tirar essa complexidade inerente ao que somos é a maneira mais rápida e fácil de atender a desumanização do racismo. 

Fonte: Redação Nós
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