Caso Depp e Heard: o que acontece quando pactos narcísicos são rompidos?

Ainda que Amber Heard perca a causa judicial, o pacto narcísico branco feminino irá levantá-la

1 jun 2022 - 05h00
Advogados de Johnny Depp e Amber Heard fazem declarações finais em julgamento de difamação
Advogados de Johnny Depp e Amber Heard fazem declarações finais em julgamento de difamação
Foto: Reuters

“(...)É O CONSENSO BRANCO. É ELA QUEM REPETE E QUEM CONFIRMA AS PALAVRAS DE NARCISO. ELA SEGUE-O SILENCIOSAMENTE, E CASA MOMENTO DO SEU SILÊNCIO APLAUDE O DISCURSO DE NARCISO.”

GRADA KILOMBA

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Textão sim: nada nesse caso é tão simples como parece

A artista Grada Kilomba é cirúrgica quando aponta que homens brancos são narcisos, que validam e buscam apenas o que lhe reflete e representa, transformando a sociedade em um espelho deformado e caquético, e fazendo todo tipo de manobra para manter seu vício em si mesmo. Esse vício não é apenas branco, é também patriarcal, o que automaticamente exclui mulheres. Exceto, as  mulheres brancas, seus pares raciais.

A racialidade os aproxima e confere a mulheres brancas um ‘quase’ valor humano diante do homem branco. Mas não constitui um elemento completo de poder dentro das relações. Por isso, intuitivamente, mulheres brancas tem buscado usar esse capital sociopolítico para angariar algum nível de poder, sobretudo onde não interessa aos homens narcisos, no meio das mulheres não brancas.

Na escala de desumanização dada pela raça e pelo gênero, mulheres brancas estão acima de todas as outras. O que o gênero subtrai, a brancura como ideal de humanidade, repõe. É uma dicotomia importante, embora silenciosa, mesmo com os apontamentos cada vez mais constantes das mulhere não brancas.

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Uma Amber Heard não seria exibida com tanto orgulho, ao mundo brancocêntrico e patriarcal, por um astro de meia idade que permanece galã das massas da cultura pop imperialista, se tivesse a aparência de Lupita Niyongo ou Viola Davis, por exemplo. Não podemos esquecer que falar em raça e gênero é falar sobre relações de poder desiguais que criam lugares sociais de privilégios e vantagens para os que dominam. E todo mundo quer, por questões de sobrevivência ou por deformações de caráter, se aliar a quem domina, por quem está no “hype”.

Suponhamos que mulheres brancas sejam o primeiro grupo, que por questões de sobrevivência se aliam ao poder dominante usando o capital racial como bilhete dourado para uma ascensão social, que será limitada é bom lembrar. Mas não sejamos ingênuos, pois, nem todas estão pensando na sobrevivência. Muitas tem sim deformações de caráter, o que as coloca no grupo de sub-opressoras (conceito cunhado por Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido). E é igualmente uma questão de sobrevivência para mulheres de outros lugares sociais analisar friamente em que grupo algumas mulheres brancas se posicionam.

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Foto: Reuters

Tudo merece ser discutido: por mais difícil que seja nenhum assunto pode ser tabu

Há muito tempo feministas negras ou não brancas denunciam, ainda que timidamente, os acordos ocultos feitos entre mulheres e homens brancos. A negociação entre ambos gira em torno do silêncio ou da negligência sobre os meandros das opressões que desenham contornos e dinâmicas variadas e variáveis, cheias de significados e significantes distintos.

É compreensível esse pacto partindo do princípio capitalista/individualista de que “cada um luta com as armas”, mas até que ponto essas armas se tornam perigosas para todas as mulheres, incluindo a própria que adere a esses acordos, que podem muito bem ser chamados de pactos narcísicos da branquitude (conceito cunhado pela mestra Cida Bento, agora em livro) feminista?

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Amber Heard se apresenta como uma encruzilhada que nos convida a pensar nessas e em muitas outras dinâmicas que estão nas entrelinhas de uma disputa que se transformou em um verdadeiro reality show. Ao que parece o pacto silencioso se rompeu. Mas que pacto? O pacto da negligência ou da ausência da crítica feminina e feminista sobre como as masculinidades convertem o etarismo como uma questão que oprime apenas mulheres, ao preferirem as mais novas, enquanto preterem mulheres que, assim como eles, estão envelhecendo, definindo assim uma suposta deterioração do valor humano (feminino) atrelada a esse processo.

Óbvio que relacionamentos com diferenças de idade não são em si problemáticas e quem acusa essa crítica necessária de puro e simples preconceito é suficientemente leviano para ser descartado de discussões sérias. Problemática é a preferência escancarada e naturalizada pela juventude como símbolo de “mais valia” afetiva e relacional.

Outro pacto silencioso, silencioso mesmo, é o racial. Os homens (no geral) continuam preferindo as loiras e o mundo, especialmente feminista, continua agindo como se isso não fosse um sintoma do racismo estrutural. Mulheres como Amber Heard não se importam com esse tipo de questão simplesmente porque não são atingidas diretamente por ela, ao contrário, são beneficiadas (ou pensam que são, pois na prática não é bem assim). Mas os homens que continuam preferindo as loiras não estão apenas no campo da afetividade. Estão no campo da acumulação de capital que mantém as riquezas concentradas em mãos brancas. Riquezas essas construídas por mãos não brancas. Então, o casamento é por amor sim, mas amor a que especificamente? A junção de patrimônio. Não por acaso a disputa entre Johnny Depp e Amber Heard vale dinheiro, muito dinheiro.

O custo dos pactos silenciosos: quem vai pagar por isso?

Mas precisamos pensar no que está sendo demandado do pacto que se rompeu. Atribuir a Amber Heard um status de vítima é no mínimo desrespeitoso com mulheres, especialmente as não brancas, que realmente vivenciam as experiências de abusos diversos, muitos dos quais só são possíveis mediante o silêncio e a negligência de mulheres como Heard. É extremamente problemática a fala de Heard exaustivamente veiculada dizendo que “ninguém acreditaria” em Depp porque ele é homem. O reforço no estereótipo da luta feminista como uma simples “guerra dos sexos” é um truque ou um backlash muito usado pelos meios de comunicação nas décadas de 80 e 90 e ainda reverbera nos dias de hoje. Feminismo não é sobre isso, até porque na escala de valos das masculinidades, homens negros, pobres e não brancos tem ônus proeminete e contínuo.

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Da mesma forma, fazer vistas grossas para as provas apresentadas que apontam que Amber Heard esteve mentindo em muitos momentos é fortalecer o estereótipo de pureza e fragilidade nata das mulheres brancas, que inclusive fortalece diretamente o estereótipo de agressividade atribuído a mulheres negras ou não brancas.

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Foto: Reuters

O feminismo, assim como todas as outras lutas contra opressão reinvindica a humanização de sujeitos. E reinvindicar humanidade inclui entender que mulheres são pessoas e pessoas erram, mentem, manipulam, trapaceiam e tem fragilidades de caráter que devem não apenas serem apontadas como corrigidas, inclusive, pelo bem de uma luta legítima por um bem viver coletivo.

É imperativo e sem espaço para discussão que o feminismo é em qualquer vertente ou caminho uma luta legítima pela igualdade e equidade das mulheres que estão há séculos sendo oprimidas por um status de supremacia masculina consolidado e por uma cultura patriarcal sufocante e assassina de corpos e subjetividades. E nessa luta cabem todas. Mas o que não deve e nunca deveria caber são os acordos e pactos feitos com a passabilidade racial que transformam mulheres brancas em subopressoras e/ou negligentes, a medida em que fortalecem homens que não irão dispor dos seus privilégios para que elas avancem, de fato, dentro da sociedade. Uma vez que mulheres brancas aceitam esses pactos devem entender que a sororidade não pode acobertá-las, sob pena de fragilizar ainda mais as que não tem o bilhete dourado da racialidade para protegê-las, pelo menos, das violências sociais como a fome, a miséria, a falta de moradia, a falta de apoio moral, etc.

Ainda que Amber Heard perca a causa judicial, o pacto narcísico branco feminino irá levantá-la e, com o tempo, outros pactos raciais serão construídos com outros homens que não estão no “nível Depp de poder masculino” mas que buscam esse nível. Ao passo que as outras milhares de mulheres não brancas que estão neste momento sendo espancadas e violentadas por masculinidades socialmente inferiores em alguma periferia ou favela terão suas vozes prejudicadas pela leviandade do sistema patriarcal que vai usar esse caso a exaustão para silenciá-las: “ninguém vai acreditar em você porque você é mulher e Amber Heard também”.

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Dois pesos e a mesma medida: quem é vítima de quem?

Johnny Depp, por mais que seja querido e valioso para o mundo da sétima arte, por mais que tenha histórias amorosas com desfecho mais ameno, e ainda que possa ser a parte violentada nessa história, não é vítima de fato, pois conta com outros pactos narcísicos que o permitiram escolher as companheiras mais vantajosas para manter seu status no panteão das masculinidades dominantes, a despeito de ter diversos problemas e conturbações humanas que colocam qualquer relacionamento afetivo como inviável.

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Foto: Reuters

Moral da história: mulheres brancas, cuidado com os pactos silenciosos pois mesmo que vocês não sejam vítimas acabarão sendo vitimadas por eles.

Fonte: Redação Nós
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