Na última semana, a comoção tomou conta da nossa sociedade viciada em se comover, ao presenciar o assédio e a importunação sexual de dois homens sobre uma mulher em rede nacional no reality show mais visto e comentado do país.
Por mais que eu seja extremamente crítica ao vício social da indignação improdutiva, jamais poderei negar que as comoções públicas são legítimas e têm total respaldo na lógica das lutas contra as opressões de raça, classe e gênero e preconceitos que as tangenciam. Principalmente no caso de uma sociedade como a nossa, onde o feminicídio mata centenas de “empoderadas” anualmente. Todas com sangue de Maria Bonita (ou Joana D’arc) morrendo nas mãos dos moços de bom coração, com seus corpos e suas regras que, infelizmente não são nossos corpos, mas estão submetidos às regras que também não fizemos.
Mas nem é esse o foco aqui.
O foco é justamente a potência da naturalização do racismo que está e sempre esteve no óbvio, legível e escancaradamente recorrente comportamento da sociedade e que está representado dentro do programa, não só dessa edição, de todas onde houve ou não negros participando.
A pergunta que não quer calar é:
diferentemente do machismo, o racismo só provoca a comoção generalizada quando tem requintes extremos de crueldade e/ou o assassinato consumado e comprovado a olhos nus?
Na década de 60, a ONU instituiu o Dia Internacional de Combate contra a Discriminação Racial. Mas a ação só se deu após o massacre de Sharpeville, que deixou 69 mortos e mais de 180 feridos em um processo contra o Apartheid na África do Sul.
Novamente pergunto: antes disso, quantos morreram ou se feriram, com ou sem participação em protestos, apenas por serem negros? Precisou de um dia para institucionalizar o combate a algo que já havia matado milhares de pessoas.
Precisa morrer para comover?
A discriminação é um dos idiomas principais do racismo e o assassinato de pessoas negras é o ápice de sua expressão. Ele é equivalente ao assédio e à importunação sexual, que muitas vezes está presente nas pequenas e, aparentemente inocentes, interações cotidianas entre homens e mulheres em todo e qualquer espaço, inclusive nos realities shows.
Porque não tratamos do racismo nas pequenas expressões cotidianas, nas sutilezas de sua presença nas interações entre negritude e branquitude tal qual estamos tratando o machismo?
O choro ou o sofrimento da mulher branca é validado por outras mulheres brancas, mas e as micro violências cotidianas que se expressam na convivência entre branquitude e negritude, como uso insistente de estereótipos, invalidação intelectual, importunação psíquica, estigmatização do comportamento, preterimento afetivo, entre tantos outros tipos de gaslighting racial que importunam pessoas negras, especialmente mulheres? Não provocam a empatia e a sororidade das mulheres brancas?
Não.
E isso é sintoma da negação e omissão racista que caracteriza o feminismo branco burguês e modista que tomou conta do mainstream nos últimos anos, deturpando conceitos e criando outras formas de exclusão e discriminação entre as subalternidades de gênero.
Esse feminismo torto e inautêntico que nega ou sequer conhecer o fato proclamado pela feminista negra norte-americana Audre Lorde sintetizado na sabia expressão:
“As ferramentas do mestre não irão desmantelar a casa do mestre”.
A negação é uma delas. A omissão é outra. Mulheres brancas usam ambas sem se tocar de que não há separação real entre as práticas do machismo e do racismo. Um se apoia no outro para renovar suas ações e alavancar suas estratégias de defesa da supremacia patriarcal branca.
E ambas dançam de mãos dadas sob o palco do elitismo, ferramenta fundamental da hierarquia de classes sociais. E todos se correlacionam entre si, simultaneamente e individualmente, atuando na manutenção do status quo das opressões que estruturaram nossa sociedade.
Duvida? Então vejamos.
Antes do assédio e da importunação sexual, o racismo já estava em ação através do gaslighting racial, que guardada as devidas especificidades, não difere conceitualmente do gaslighting de gênero.
Sem falar na afroconveniência de um dos participantes assediadores que serviu para ostentar a visível herança negra, mas não foi “ancestral” o bastante para motivar coletividade negra dentro da casa.
O fato é que toda essa celeuma nos mostra, pela incontável vez, que toda e qualquer ação anti-discriminatória e antirracista só ocorre em nossa sociedade quando algum tipo de massacre acontece. Como na casa dos brothers e sisters o massacre é psíquico, não comoveu nenhum feminismo nem gerou qualquer tipo de solidariedade, dentro ou fora de lá. Dá até a sensação de que apenas mulheres brancas sofrem assédio e importunação sexual.
E mais uma vez é preciso perguntar: onde as comoções públicas têm nos levado?
Porque ou ela começa a nos levar a alguma mudança prática que inclua o desmonte do negacionismo diante dos casos cotidianos ou precisamos começar a tratá-las como única e exclusivamente manobra de dissimulação do sadismo supremacista que se regozija diante da morte dos corpos negros e, por isso, usa a indignação como manipulação psicológica para pacificar a negritude mais desatenta que se contenta com discursos que são releituras do mito da democracia racial.