O Brasil é o país da obviedade. Não por acaso, qualquer frase de efeito (ou a famosa lacração, como ficou popularmente conhecida) toma as atenções como fogo no palheiro e passa a ser repetida à exaustão, sem mudar nada, absolutamente nada no senso comum da sociedade. Quem dera a gente aderisse ao pensamento crítico que propôs Paulo Freire e parasse de nadar no raso das discussões urgentes. Qualquer pessoa minimamente atenta conseguiria criar o dicionário dos chavões ou o livro das eloquências vazias que transitam nos debates populares dos últimos tempos.
Ao assumir o posto de Ministro de Direitos Humanos, o habilidoso intelectual Silvio Almeida disse em seu discurso que “o óbvio precisa ser dito”. Bem, eu entendo perfeitamente o que e para quem o ministro quis dizer isso, mas infelizmente soou como uma autorização perigosa dada a uma grande parcela de pessoas que propagam obviedades, seja com a desculpa elitista de que é só assim que "as massas entendem", seja como cortina de fumaça para sua própria preguiça ou pobreza intelectual que, uma vez estagnada pela falta de busca por aprofundamento, não tem mais nada de novo a oferecer. Vivemos no looping do museu de grandes novidades que o inesquecível Cazuza cantou.
E não é que uma das discussões mais importantes da nossa sociedade é um cenário perfeito para se apurar esse quadro que é tão perturbador. Digo perturbador porque uma sociedade não progride se não se permite, ao menos no debate público, ir além do óbvio.
E já não cabe mais dizer que “esse discurso não chega na favela” porque é público e notório que a favela produz intelectualidade orgânica de primeira grandeza.
Há tempos que não se sustenta mais essa falácia elitista e genuinamente branca de que o conhecimento e a consciência crítica é restrito aos espaços acadêmicos, até porque temos exemplos nada honrosos de como esses espaços são excludentes e aniquiladores da presença de questionamentos não hegemônicos. E não, de maneira alguma sou ou serei contra a academia, ao contrário, sou a favor sempre de que as mentalidades que ali se desenvolvem e pautam a sociedade com suas pesquisas deixem de falar para si mesmas e sempre as mesmas coisas e passem a dialogar, humildemente, com os saberes populares e não hegemônicos das favelas e periferia, não em tom professoral e, sim, de trocas nutritivas e produtivas para a sociedade.
Mas há também uma questão importante: os debates, incluindo os mais rasos, tendem a se esgotar quando a "vida real" pede um fim prático, efetivo, especialmente aqueles que definem os rumos sociais que tomamos ou rejeitamos.
Todos os debates sobre a discriminalização do aborto estão saturados e já não dizem mais nada. Os argumento são óbvios, mas continuam sendo repetidos com pompa de novidade: trata-se do corpo da mulher, os que são contra não bancam o sustento das crianças que nascem, haja vista a quantidade de crianças abandonadas. O Brasil não regula abandono parental masculino, não resolve a violência de gênero e tampouco age de maneira efetiva no combate ao feminicídio. Não é uma questão religiosa e, sim, de saúde pública. O Estado e o pátrio poder (redundância) não têm permissão para cercear o direito da mulher sobre o próprio corpo, etc. Cientificamente também já estão esgotados os argumentos: até dez semanas de gestação não é um feto, é um embrião ou produto da concepção.
Quer dizer, já passa da hora de entender que estamos em um debate moral e que o que nos resta é o "tudo ou nada" ou a pergunta que não quer calar:
O Brasil é a favor ou contra a vida DA PESSOA MULHER?
Aliás, um dos poucos "óbvios" que precisa ser dito é justamente esse: mulheres são pessoas já formadas e com a vida em andamento, e, neste caso, têm seu direito de tomar decisões sobre seu próprio corpo cerceado pela moralidade vigente, que é hipócrita, ignorante e severamente autoritária.
E isso, sim, essa celeuma falsa que serve de cortina de fumaça para as reais intenções de quem diz lutar pela vida, mas deseja a morte dos e das que não obedecem os seus delírios autoritários, não deve ser levado em consideração. Não cabe mais debate. É isso também é óbvio, mas por que ninguém quer admitir?
Porque há um interesse confuso na continuidade da celeuma histérica que sobrevive de gritarias que objetivam engajamento lucrativo (para aqueles que já lucram o suficiente) e alimentam a fogueira das vaidades midiáticas e acadêmicas, onde o foco é o exibicionismo intelectual e não soluções para o bem comum, e é também covarde o bastante para não dizer o que não é tão óbvio.
O estado brasileiro age como Pôncios Pilatos, se privando de encarar a questão como disputa política sob pena de perder um eleitorado que nem ao menos conquistou. O Estado brasileiro não quer responder a pergunta sobre até que ponto leva a sério o dever de garantir as liberdades individuais das mulheres.
É preciso fechar esse debate improdutivo, pois o autoritarismo não é apenas delirante, é convenientemente burro e usa de manipulações e desonestidade para fazer valer os direitos que não tem enquanto deixa a turma do “óbvio que precisa ser dito” sem ter realmente o que dizer e sem pressionar quem deve ser pressionado.
Isso turva o entendimento daqueles que querem entender de fato, mas a questão é que, intuitivamente, todos entendem que não é uma discussão sobre dogmas e padrões morais e, sim, de saúde pública e de seriedade das nossas instituições, que ao permanecerem com essa criminalização irresponsável, deprecia a própria autoridade, já que abortos sempre foram e continuarão sendo feitos. Agora, se a resposta do Brasil for categoricamente "não", teremos que lidar com o fato de que estamos em um país que é contrário à vida das mulheres.