Isso não é um Dorama: a greve de fertilidade na Ásia é resposta à misoginia e ao patriarcado

Mulheres asiáticas se mobilizam de maneira prática, a partir do poder biológico que lhes resta, o da continuidade da vida

8 mar 2024 - 05h00
(atualizado às 16h58)
A resposta das mulheres sul-coreanas ao machismo e à desigualdade de gênero é a abstenção da maternidade
A resposta das mulheres sul-coreanas ao machismo e à desigualdade de gênero é a abstenção da maternidade
Foto: iStock/kyonntra

Dorama é o nome genérico que descreve as séries asiáticas, japonesas, chinesas e, as mais populares, sul-coreanas. Já abordei nesta coluna anteriormente o quanto essas séries, especialmente os k-dramas (dramas sul-coreanos), por trás dos enredos românticos e das abordagens bem novelescas, esconde - mas não tanto - um esforço estratégico importante para o empoderamento das mulheres não apenas asiáticas, já que esse formato nada novo, mas muito bem usado, tem conquistado mulheres ao redor do mundo. 

Contudo, quero destacar aqui que enquanto muitas mulheres de outras partes do mundo, principalmente as brasileiras ou as que vivem em um contexto político onde prevalece o feminismo liberal ou 'girl power', gastam sua energia política tentando convencer os homens a se tornarem aliados na luta contra seus próprios privilégios, as mulheres asiáticas se mobilizam de maneira prática, a partir de poder biológico que lhes resta: o da continuidade da vida. 

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O poder das mulheres em sociedades estruturadas pela misoginia patriarcal é suprimido violentamente através de políticas de cerceamento da liberdade de corpos nas mais variadas formas, mas principalmente do controle reprodutivo.

Um exemplo muito óbvio é a criminalização do aborto, que faz com que jargões feministas como “Meu corpo, minhas regras” sejam facilmente convertidos em falácia proferida por aquelas que não entendem bem a profundidade do assunto. 

As violências sexuais, como estupro e assédio, também são práticas políticas de controle de corpos e, não por acaso, os números nunca cedem, ainda que as políticas públicas dos orgãos governamentais tenham parcela significativa de culpa, ao não proporem medidas realmente eficientes no combate a violência de gênero, a hierarquia de classe e ao racismo. 

Mas, justamente se valendo do poder reprodutivo, é que temos na luta das mulheres asiáticas um exemplo importante de como nossos corpos podem realmente obedecer nossas próprias regras. 

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O feminismo asiático tem uma longa e tenebrosa história, marcada por lutas intensas em um ambiente extremamente apegado a tradições patriarcais que perduram até a contemporaneidade. Mas tomo como exemplo principalmente o feminismo sul-coreano, que vem sofrendo forte e declarada ofensiva, inclusive institucional, que culminou na eleição de um presidente declaradamente antifeminista e, que teve como uma de suas principais ações de governo, a extinção do ministério da igualdade de gênero.

A resposta das mulheres sul-coreanas: abstenção da maternidade

Na última semana, veículos de informação noticiaram que a Coreia do Sul bateu seu próprio recorde na queda de natalidade, que já é a menor do mundo todo, mesmo com políticas de incentivo da natalidade financiadas pelo governo. 

No Brasil, alguns veículos também noticiaram o fato, mas de maneira superficial, não enfatizando o que realmente está acontecendo por lá. Alguns até fizeram a seguinte pergunta:

- Por que as mulheres sul-coreanas não querem ter filhos?

Isso coloca o foco na escolha das mulheres, mas não na responsabilidade dos homens ou mesmo nos privilégios sociais masculinos e na cultura patriarcal como verdadeiros responsáveis pelo que está sendo chamado de "greve de fertilidade” ou  renúncia consciente das mulheres à maternidade. 

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Isso mesmo, as mulheres sul-coreanas não só estão exercendo por outras vias a autonomia dos seus corpos, como estão influenciando toda a Ásia, especialmente o Japão, China, Tailândia, Cingapura e a Coreia do Norte. 

Meses atrás, o presidente da Coreia do Norte, Kim Jong Un, apareceu chorando e implorando para as mulheres terem filhos.

O presidente sul-coreano, Yoon Suk-yeol, afirmou em entrevista ter gasto mais de US$ 200 bilhões (R$ 1 bilhão) nos últimos 16 anos em incentivo à natalidade. Mas não contou ao mundo que a Coreia do Sul é um dos países mais patriarcais do mundo.

Nem contou que, por convicção, não investiu nada na conscientização contra a misoginia e contra as desigualdades de gênero e tampouco criou políticas de incentivo à ruptura com a cultura e as tradições patriarcais que tornam mais difícil a vida das mulheres. 

A Coreia do Sul tem as piores disparidades salariais entre homens e mulheres na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE, sendo que são justamente as mulheres coreanas as mais qualificadas de acordo com essa organização. Apesar de estudarem mais, recebem cerca de dois a três terços do rendimento que os homens. 

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A Coreia do Sul tem índices altos de crimes sexuais digitais, como câmeras escondidas em locais públicos para tirar fotos íntimas de mulheres. 

A ex-ministra da igualdade de gênero, Chung Hyun-back, disse ao jornal The New York Times, em janeiro de 2023, que durante a sua gestão, entre 2017 e 2018, elencou políticas de incentivo à natalidade, mas que não obteve sucesso porque as mulheres coreanas se recusam a ser “fábricas de bebês” em uma sociedade que não as respeita. Hyun-Back ainda rebate o governo atual, que diz que o feminismo é culpado por destruir as relações saudáveis entre homens e mulheres, afirmando que a igualdade de gênero é o único caminho para restabelecer a crença das mulheres na maternidade.

O fato é que essa decisão das mulheres de se proteger da misoginia se abstendo da maternidade, desencadeou uma crise demográfica da Coreia do Sul, tornando-se o principal risco para o crescimento económico e para o sistema de segurança social, com a população do país de 51 milhões de habitantes a caminho de reduzir para metade até ao final deste século. 

A Coreia do Sul projetou anteriormente que a sua taxa de fertilidade deverá cair ainda mais para 0,68 em 2024. A capital Seul, que tem os custos de habitação mais elevados do país, teve a taxa de fertilidade mais baixa, de 0,55 no ano passado.

Essa ação das mulheres asiáticas, que vem se espalhando pelo mundo todo, me lembra muito o Itan (lendas do povo Iorubá) de Oxum, que conta que, após a criação do Àiyé, foi convocada uma assembleia para definir o seu destino, onde apenas os Orixás masculinos podiam estar presentes. Oxum, muito aborrecida, estabeleceu que, a partir daquele momento, deixaria de derramar suas águas doces sobre o Àiyé, o que tornou o mundo infértil, mulheres já não podiam gerar. Diante da gravidade da situação, o povo no Àiyé buscou Exu, que orientou que sem Oxum e suas águas doces, nada cresce sobre a terra. Oxum, a Yalodê, determinou que sem as mulheres, nada na terra floresce ou se desenvolve. 

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Embora estejamos falando de culturas diferentes, os desafios diante da supremacia masculina são similares, bem como os modos intuitivos de luta e um deles é mostrar que o domínio estratégico de nossos corpos por nós mesmas é uma arma poderosa. 

Fonte: Redação Nós
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