O curioso caso da discussão sobre etarismo que exclui o racismo

Mulher negra sofre com o preconceito, o abandono e a opressão da idade avançada mesmo quando ainda é jovem

26 ago 2022 - 11h49
(atualizado às 12h00)

“Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas” 

Audre Lorde

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Conselho de Sentença absolveu João Paulo Servato dos crimes de lesão corporal grave, abuso de autoridade e falsidade ideológica
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Foto: Reprodução/Denúncia MPSP

A absolvição do policial que pisou no pescoço da comerciante negra no bairro de Parelheiros em 2020, deveria qualificar o debate sobre etarismo, uma vez que a vítima da truculência, apesar de não se enquadrar na faixa etária da terceira idade, pois tem 53 anos, é mulher e negra e tem no currículo da vida inúmeras camadas de vivência das desigualdades que vem pela questão da raça e do gênero. 

Inclusive o próprio empreendedorismo da vítima, que para mulheres negras é praticamente compulsório, deve ser analisado como uma consequência da progéria social que acomete essa parcela numerosa na quantidade mais irrisória no acesso a direitos. 

Acontece que esse debate descambou para questões menos importantes e menos traumáticas (como pintar ou não os cabelos brancos, por exemplo), e vêm deixando questões vitais como a falta de moradia, o desemprego, a ausência de suporte social para garantir condições básicas para manter a autonomia na velhice, entre outras questões de classe, raça e gênero que se aprofundam quando a idade avança, completamente de fora do debate. Mas são essas as questões que impactam a velhice consumada de mulheres negras. 

Estamos tratando o etarismo como uma reafirmação silenciosa do privilégio social da pessoa branca, da mulher branca.

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Enquanto mulheres brancas lamentam serem retiradas do 'trono da beleza' por conta de rugas e cabelos brancos, amplamente discutidos nas rodas de conversa sobre etarismo, as mulheres negras, com a velhice precoce sendo consumada pela idade avançada, experimentam o agravamento do abandono e da rejeição que caracteriza sua jornada desde o nascimento. 

A comerciante Elizabete Teixeira da Silva, de 53 anos, foi humilhada e pisoteada pelo policial em 2021 do mesmo modo que fizeram com George Floyd nos EUA em 2020.

Com ele houve (justa) comoção brasileira, já que apesar de negro ele era homem e gringo. Do mesmo modo que há algumas semanas, houve acolhimento (justo!) a mãe branca e rica que brigou pelos seus filhos negros vítima de racismo em Portugal.

Segundo a Promotoria que cuida do caso, a mulher estava desmaiada e rendida, sem apresentar qualquer risco aos policiais e ainda assim, foi submetida a uma situação vexatória. O policial foi absolvido sob alegação de que vídeo e filmagens feitas não comprovam que houve violência. Nem cogitaram como hipótese que a ação do policial foi motivada pela equação racismo + machismo + etarismo + aporofobia (o ódio ao pobre).

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E não há comoção. Assim como não houve comoção para Cláudia da Silva, arrastada pelo carro da polícia em uma avenida movimentada ou para Luana Barbosa, espancada até a morte por se opor à abordagem racista e lesbofóbica da polícia, entre tantos outros exemplos e violência contra mulheres negras. 

Fica a pergunta que todos sabemos a resposta: se fosse branca, se fosse jovem, se fosse rica ou se fosse homem… o silêncio e a resiliência social seriam a única resposta?

Por essas e outras questões que não cabem em uma coluna, precisamos entender de uma vez por todas o que disse a teórica do feminismo negro Audre Lorde que diz que não seremos livres enquanto alguma corrente estiver prendendo alguém. Não teremos a solução para o etarismo enquanto estivermos suprimindo a discussão sobre o racismo como centro de todas as opressões que estruturam a sociedade.

Etarismo + Racismo

O termo foi criado em 1969 pelo Dr. Robert Neil Butler, um médico psiquiatra que tinha 42 anos na época e chefiava o Comitê Consultivo sobre Envelhecimento do Distrito de Columbia, em parceria com a Autoridade Nacional para Habitação da Capital ( NCHA). Em uma entrevista para Washington Post, Butler usou o termo “ageism” para descrever a resistência dos proprietários de casas em Chevy Chase/Maryland, um subúrbio bastante adensado de Washington, DC, que estavam angustiados com a decisão do NCHA de transformar um complexo de apartamentos em habitação popular (ou de interesse social, como falamos aqui no Brasil).

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A matéria escrita pelo jornalista investigativo Carl Bernstein, intitulada "Idade e medos raciais vistos na oposição à habitação", teve grande repercussão, e a imprensa passou a usar o termo para falar sobre as questões de toda e qualquer pessoa idosa. Isso não é algo absurdo, já que a velhice e os preconceitos e rejeições relacionados a ela são universais, mas é com a negritude que observamos o aprofundamento desse problema, chegando ao ponto de serem impedidos de receber o benefício da moradia pela repulsa dos moradores daquela região.

A princípio, o etarismo ou preconceito de idade foi observado, principalmente, em relação às pessoas negras e pobres em processo de envelhecimento, cujos estereótipos negativos que já carregavam se somavam uma suposta invalidez, que se agravaria com o avançar da idade. Esse quadro se repete exatamente da mesma forma aqui no Brasil e, sim, tem o peso da racialidade agravando o abandono e a repulsa da sociedade para com os mais velhos.

Para as mulheres negras a velhice é precoce

Em 2009 o diretor David Fincher levou para as grandes telas do mundo, com o excelente roteiro de Eric Roth adaptado do livro homônimo de F. Scott Fitzgerald , o longa metragem ‘The curious case of Benjamin Button' que em português ficou “O curioso caso de Benjamin Buttom”, estrelado por Brad Pitt e Cate Blanchett. Sem dúvida alguma o filme é tão bonito quanto inusitado e é adaptação de uma história que tem ressonância na vida real: um menino que nasce velho e vai se tornando jovem à medida em que envelhece.

Na vida real temos uma condição genética raríssima que afeta uma em cada oito milhões de bebês ou crianças, que é popularmente conhecida como progeria (do grego geras que significa velhice) e cientificamente se chama Síndrome de Hutchinson-Gilford. Diferentemente do filme e do romance de Fitzgerald, isso não tem reversão, uma vez acometido por essa condição o envelhecimento é até dez vezes mais rápido e precoce, tornando a aparência dessas crianças ou bebês muito semelhante a de uma pessoa idosa. Um jovem biólogo molecular italiano que sofre dessa alteração genética, Sammy Basso, atualmente com 26 anos, tem empenhado seus estudos na busca por uma cura ou controle e, diante de sua perseverança é bem possível que ele consiga. Estima-se que no mundo todo existem cerca de 70 pessoas que sofrem com essa condição genética.

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Evidente que essas crianças, que em geral têm expectativa de vida entre 13 e 18 anos, sofrem com o etarismo, além de todos os outros sintomas da disfunção que apresentam. Então evidentemente não dá para fazer uma comparação simétrica entre a vivência de meninas negras e a vivência de crianças em que a progéria seja o principal determinante de suas condições de vida. Mas dá para adaptar o termo para explicar como socialmente a criança negra, sobretudo as meninas negras, são vistas e tratadas em uma sociedade em que o racismo é estruturante.

O relatório Girlhood Interrupted: The Erasure of Black Girls’ Childhood (Infância Interrompida: O Apagamento da Infância de Crianças Negras), do Georgetown Law Center on Poverty and Inequality, publicado em 2017, concluiu através de dados e pesquisas que meninas negras são vistas como menos inocentes e mais sexualizadas do que meninas brancas da mesma idade. No Brasil, os números de crianças e adolescentes do gênero feminino vítimas de estupro e assédio são bem maiores comparados aos números de vítimas da raça branca. 

Isso quer dizer que o entendimento de que crianças precisam de proteção não se estende a elas. Podemos pensar então, que há uma progéria SOCIAL que atinge crianças negras, especialmente, meninas negras? 

Sim, podemos. O que não podemos e nem devemos é tratar do etarismo excluindo sua nascente que é o racismo. Aliás, já passou da hora do negacionismo brasileiro sobre o racismo que o estrutura, ceder e parar de “futilizar” as discussões fazendo essa cisão da perspectiva racializada como estruturante de todas as desigualdades e opressões sociais.

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Isso significa reconhecer que para as mulheres negras a velhice é sempre precoce, o que as coloca à margem do ideal de feminilidade, que é essencialmente pautado pela juventude como característica principal da aceitação. Ou seja, mulheres precisam ser jovens para serem vistas como desejáveis (em todos os sentidos, não apenas sexual), e isso significa que para cada “novinha” branca acontecer há uma “velhinha” negra sendo estigmatizada desde cedo, ainda que as duas sejam dois lados da mesma moeda que é o machismo. Além disso, é preciso ser honesto/a o bastante para admitir que os danos que a velhice causa na vida de pessoas brancas é infinitamente menor do que os danos que causa na vida de pessoas racializadas, até porque a vivência das desigualdades é cumulativa e crescente.

Isso é falar sério sobre etarismo ou idadismo. Então, a mulher negra sofre com o preconceito, o abandono e a opressão da idade avançada mesmo quando ainda é jovem. Esse dado por si só já deveria racializar o debate sobre etarismo. Mas temos um agravante: o etarismo, também conhecido como idadismo e que é por definição a opressão, discriminação e preconceito que se dá pela idade (especialmente avançada), é justamente um dos viéses do racismo.

Fonte: Joice Berth
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