O que caso de plágio da música de Emicida nos ensina sobre novas práticas de racismo

Bauducco é só mais uma a contribuir para a morte simbólica de pessoas negras através da tentativa de apagar seu trabalho

19 out 2023 - 15h33
(atualizado em 12/4/2024 às 17h27)
Duda Beat e Juliette foram acusadas de plagiar trabalho de Emicida, que seria usado pela marca Bauducco em nova campanha
Duda Beat e Juliette foram acusadas de plagiar trabalho de Emicida, que seria usado pela marca Bauducco em nova campanha
Foto: Divulgação/Rodamoinho Records/Reprodução/Jef Delgado / Estadão

A marca entra em contato para formar uma parceria de trabalho. Pede que se desenhe um projeto. Não fecham o contrato por razões não especificadas. Mas, de repente, o autor do projeto se depara com toda a sua conceituação e direcionamento intelectual aplicados de maneira dissimulada em outro projeto, em parceria firmada entre a marca e outros protagonistas…brancos ou brancas.

Que pessoa negra já não passou por isso em sua área de atuação? Eu duvido que cada profissional negro desse país não se viu em uma situação violenta como essa pelo menos uma vez na sua vida.

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Infelizmente, isso é rotineiro. E, pasme, não é restrito a pessoas negras, mas há uma óbvia racialização dessa prática silenciosa e altamente nociva para a mobilidade social da negritude. 

E isso diz muito sobre a desonestidade intelectual do povo brasileiro. Haja vista a discussão  completamente tendenciosa que se formou a partir do caso da Bauducco, que teria plagiado toda a produção conceitual e intelectual do rapper Emicida após receber uma recusa em estabelecer uma parceria tendo como panos de fundo para o rebranding da marca um dos maiores sucessos do artista. E pior, ter entregado o protagonismo da campanha a duas artistas brancas. 

Não sejamos ingênuos em negligenciar o fato de que ambas as artistas deveriam avaliar previamente onde estavam se metendo.Por mais queridas que ambas possam ser, e são por muitos, tanto Juliette quanto Duda Beat erram não exatamente em protagonizar uma campanha de autoria duvidosa, mas, sim, em não conhecer o trabalho de um artista que é uma das figuras mais proeminentes de seu tempo.

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É perfeitamente possível que ambas não conheçam o trabalho do artista, pois é praxe da branquitude não se interessar - ou ignorar mesmo - o trabalho da negritude, mesmo daqueles que se destacam, como é o caso de Emicida.

E isso, sim, deve ser discutido porque abre margem para uma prática muito recorrente do racismo estrutural: o apagamento da contribuição da negritude, não só na música, mas também em todo e qualquer assunto relevante do país.

Funciona assim: desvalorização >>> negligência >>>silenciamento >>> usurpação e apagamento.

Primeiro se desvaloriza a produção negra, atribuindo peso pejorativo de nicho, tal como trabalho “identitário” ou “militante”. Depois se negligencia, negando espaço de divulgação ou fingindo que não é relevante o bastante para ser citado ou referenciado. Nesse estágio, o autor/a intelectual do produto já começa a reclamar, então sofre o silenciamento. Chega o momento da usurpação e, enfim, o apagamento.

Vide o caso de Johnny Alf e Alaíde Costa, por exemplo. Johnny Alf foi apontado como pessoa de ‘personalidade difícil’ e, por isso, não deveria ocupar o “elegante” espaço dos bossanovista. Mas o difícil na personalidade de Johnny Alf era a cor e a raça a qual ele pertencia. Ele foi desvalorizado, negligenciado, silenciado, usurpado e apagado como o verdadeiro pai da Bossa Nova. O mesmo se deu com a brilhante contribuição de Alaíde Costa, que, agora, graças a um trabalho sério e consciente do próprio Emicida, uma marca se interessou em patrociná-la e fazer a reparação histórica, setenta anos depois.

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Podemos fazer esse percurso dos processos de apagamento para centenas de pessoas negras, do passado e da atualidade, que estão sendo apagadas. Enquanto isso, os jornais publicam futilidades e, vez por outra, algum escolhido da branquitude tem algumas migalhas de reconhecimento.

Então, a marca de biscoitos é só mais uma a seguir nessa linha ativa de contribuição para a morte simbólica de pessoas negras através da tentativa de apagar seu trabalho. 

No caso de Emicida, sua fama e visibilidade conquistadas barraram o processo, embora não tenha sido suficiente para barrar a tentativa, o que comprova que independente do lugar de destaque que uma pessoa negra ocupe, ela não está segura.

O racismo no Brasil tem novas práticas e passa por um momento de contra-ataque óbvio, com uma contraofensiva organizada e consubstanciada por diversos setores da sociedade, inclusive com o apoio de camadas significativas de pessoas negras, devidamente dotadas de letramento racial, mas que compactuam com a continuidade da estrutura racista em troca de benefícios diversos.

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Com isso, os pagamentos como prática de genocídio subjetivo da negritude tendem a se redesenhar e reorganizar em novas formas, mais silenciosas e letais até. Definitivamente, para a pauta racial e das opressões estruturais em geral, são novos e mais perigosos tempos, afinal, como escreveu o poeta Luís de Camões:

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.”

NÓS Explicamos: O que é racismo estrutural?
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Fonte: Redação Nós
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