Hoje, Dia da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha, é um dia de reflexão e não de exaltação. Não temos nada o que comemorar, exceto a benção de continuar resistindo em uma sociedade que odeia toda e qualquer tipo de diferença, especialmente as raciais, e não faz o menor esforço para disfarçar. Me incomoda muito o modo aglutinador e massificador com que se fala sobre “mulher negra” atualmente. Vejo meninas e mulheres se apresentando publicamente como “mulher negra” sem ao menos dizer o próprio nome antes. Parece que “mulher negra” se converteu em um selo de identificação, uma marca que converte toda e qualquer pessoa com características raciais semelhantes em rebanho.
Incômodo antigo esse meu. Mas dia desses, revendo o excelente documentário sobre a vida do escritor James Baldwin, "Eu não sou seu negro", esse incômodo ganhou forma na minha cabeça inquieta. Em um dos diálogos do filme, Baldwin responde a uma pergunta de um interlocutor branco, mais ou menos assim:
“Eu sou um homem, vocês é que disseram que eu sou um negro”.
Pronto. Quem cunhou o selo “mulher negra” e a que ele serve? Ao sermos “mulher negra” continuamos sendo pessoas? Ser mulher negra é ser humana? Autoafirmação? Só precisa se autoafirmar quem não está devidamente firme sobre o que é. Ou não?
É uma questão mais séria do que parece.
Os tempos mudaram. E mudaram também as práticas opressoras. Antes a desumanização seguia uma linha de atuação que era essencialmente física influenciando o mental. Hoje, segue outra, que é essencialmente mental influenciando o físico. Se em um momento da história Sojourner Truth teve que perguntar “e eu não sou uma mulher?”, frente ao uso da forjada fragilidade da mulher branca em antagonismo à forjada selvageria da mulher negra, atualmente temos que nos perguntar:
“O que é ser mulher negra?”.
Porque não é apenas sofrer e estar exposta a todo tipo de violência de gênero e raça. É muito mais. É ter que se inserir em uma massificação que nos desloca do lugar de personalidade para o lugar de personagem.
Ser personagem é seguir um roteiro previamente escrito e cumprir papéis pré-estabelecidos. Estamos fazendo isso. Atuando sem perceber no teatro social que fez da mulher negra um palanque sociopolítico em disputa aberta.
Em todos os lugares, por exemplo, “tem que ter uma mulher negra”. Mas não para existir em toda sua plenitude humana, com particularidades preciosas, com todos os seus talentos e características que se fazem únicos, pois são inerentes ao humano que a compõem.
Precisa ter uma mulher negra para que a branquitude não se sinta desconfortável em seu papel de opressora e possa fugir do racismo visível. Ou precisa ter mulher negra para ser o arrimo, a que conserta, dá suporte. A que é NECESSÁRIA. Ser a que serve, jamais a que é servida em suas necessidades humanas…isso é uma das tragédias que o lugar “mulher negra” nos impõe.
Em uma sociedade capitalista de corpo e alma é preciso criar modelos desumanos e inalcançáveis para que o consumo seja garantido, em uma incessante busca por se enquadrar ou se adequar. E o artifício mais recorrente é alimentar a vaidade em detrimento da autoestima. Isso significa que a coisificação de pessoas acaba sendo não só naturalizada também desejada.
E, com isso, quantas subjetividades são aniquiladas? Ninguém se pergunta porque estamos adoecendo tanto e com frequência ascendente.
Pode-se afirmar seguramente que “mulher negra” entrou nesse esquema. Nos tornamos produto do patriarcado capitalista, prontas a serem consumidas por aqueles que já tem a “heroína” e agora precisa do “pau pra toda obra”. As heroínas são sempre brancas, é bom dizer. Ou no mínimo adequadas pelo colorismo, quando racializadas. A figura da “mãe preta” foi revista e ampliada, ganhou verniz discreto, mas continua para a servidão compulsória.
Não somos mais pessoas ou indivíduos. Somos um novo estereótipo que deve ser seguido à risca, sob pena de ser acusada de não honrar sua negritude. Mas se negritude é um grupo que foi constituído como inferior e sujeito à exploração e à luta contra o racismo, que sustenta nossa sociedade, passa pelo desmantelamento do “lugar de negro”, o que estamos fazendo ao permitir que sejamos enquadradas em uma massa homogênea e desumanizante? O que é ser mulher negra? Temos direito à subjetividade, à individualidade? Temos direito a uma vida própria, com opiniões e posturas próprias e exercício do livre arbítrio? Ou precisamos estar a mercê de um roteiro criado por alguém que sequer sabemos quem é e o que pretende?
Quando Lélia Gonzalez disse que “mulher negra tem que ter nome e sobrenome, senão o sistema põe o nome que quiser”, era um alerta para termos domínio sobre nós mesmas e tudo que nos pertence como humanas que somos.
Não precisamos e nem devemos, em nome de uma representatividade enviesada e com fins narcisistas, nos encolher ou nos resumir ao papel de mulher negra. Somos pessoas. Mas o sistema raci-machista nos etiquetou de mulher e etiquetou de negra. A partir daí, nos jogou goela abaixo um conjunto infindável de códigos a seguir e obrigações a cumprir, entre elas, se enquadrar em uma luta que, uma vez descortinada deixa cada vez mais óbvio que é por aceitação e não por emancipação. Viver livre, como Teresa de Benguela, Luisa Mahin ou Lélia Gonzalez, minhas referências de vida e reflexão, implica em lutar pelo direito de ser única, insubstituível e com personalidade sempre em desenvolvimento. Ser mulher negra no mundo de hoje é ter consciência de que mulher negra é um lugar que nos colocaram mas, que podemos e devemos sair em busca de nosso autoconhecimento e autoestima. Ser mulher negra não é maior que ser pessoa, ser humana, com todas as luzes e sombras que isso significa.
A verdadeira luta que temos atualmente é contra nossa vaidade estimulada por uma sociedade que nos quer utilitárias e em favor do desenvolvimento da nossa autoestima que nos torna livres para sermos quem quisermos ser. Mas para chegar nesse oásis de vivência é preciso insistir em sermos nós mesmas, reconhecer e rejeitar tudo que o racismo e sexismo nos incutiu. O racismo e o sexismo contemporâneos criaram o espantalho “mulher negra” e nos venderam que isso é uma coisa boa, barganhando a aceitação que erroneamente buscamos. Mas coisa boa mesmo é ser respeitada como pessoa, sem rótulos ou cabrestos de nenhuma espécie.
Como a minha linda vovó Joaquina de Angola me disse certa vez, a única prisão que realmente detém o ser humano é a prisão mental. Sejamos livres das novas prisões que criaram para nós. Esse é o legado de Teresa de Benguela e de nossas ancestrais.