Pois é, queridos leitores e leitoras, em 2022, os números apurados pelo censo da prefeitura sobre a população que vive em situação de rua na cidade de São Paulo revelaram o que os olhos mais atentos estão mais do que cientes: a população sem casa é negra.
Das 31,9 mil pessoas que experimentam o extremo do déficit habitacional, ou seja, não tem casa e depende de abrigos e equipamentos da municipalidade para ter um teto provisório, 22,6 mil são negras, sendo que 10,9 mil são pardas e 5,5 mil são pretas, o que define um total de 71% do contingente apurado. O chocante é que em toda a capital paulistana, de acordo com a autodeclaração, 37% dos habitantes são negros, o que quer dizer que grande parte da negritude paulistana é moradora em situação de rua (dados da PMSP e IBGE fornecidos pela Revista Piauí em fev/22).
Diante dessas informações que são públicas, ao alcance de um clique, não resta dúvidas de que temos mais pessoas negras sem ter onde morar do que morando na cidade de São Paulo. Mas arrisco dizer que, no restante do país, a coisa segue a mesma linha.
Embora esses números sejam do ano passado, vieram à minha reflexão neste momento, graças ao caso do morador em situação de rua que tentou furtar duas caixas de chocolate e foi torturado pela polícia, na UPA da Vila Mariana. O vídeo é no minimo grotesco, uma reprodução fiel dos relatos do período escravista, de quando capturavam negros fugitivos. Mês passado, o episódio público de racismo sofrido pelo jogador do Real Madrid Vinícius Jr. gerou uma comoção que se espalhou feito pólvora. Diversas mensagens de apoio, chamamento para ação antirracista e até punição à Espanha, tudo isso foi ventilado nas redes sociais e nos principais veículos de comunicação, evidentemente, tudo legítimo e necessário. Mas, em nosso país, a negritude mudou sensivelmente de persona social, inclusive com alguns poucos já ascendendo ao panteão branco de privilégios, ainda que não desfrutem e nem desfrutarão integralmente dessas benesses enquanto a estrutura racista existir.
Esse é o caso do Vinícius Jr.
Mas não é o caso do rapaz, morador em situação de rua, torturado pela polícia, no bairro “nobre” da Vila Mariana, em São Paulo. Nem da entregadora que foi igualmente agredida por uma mulher branca em uma das ruas de São Conrado, no Rio de Janeiro, há cerca de dois meses atrás, que sequer foi citada nas manifestações midiáticas.
Diante da visível separação socioeconômica que a negritude brasileira vem passando ao longo dos anos, será que já podemos concluir que o racismo que comove é dirigido apenas aos negros que têm fama e poder aquisitivo?
Óbvio que o dinheiro não limita o racismo, não impede que a pessoa negra rica seja uma vítima, mas como a sociedade reage quando além de negra, a pessoa está no extremo da pobreza? O que define a gravidade do racismo, o nível de violência ou a posição social da vítima?
Essa pergunta se torna ainda mais gritante, quando situada diante do baixíssimo engajamento da população, negra e não negra, nos assuntos relacionados à cidade, ao território, à habitação, ao deslocamento nos espaços físicos que dividimos, às políticas urbanas que ordenam nossa permanência nesses espaços e que institucionalizam nossa exclusão nos negando, fisicamente, até o direito essencial de ir e vir de maneira irrestrita.
Estamos à beira de uma das maiores ameaças ao Direito à Cidade dos últimos tempos: a sobreposição dos interesses dos especuladores imobiliários, às necessidades históricas das cidades, através da revisão arbitrária do Plano Diretor, que entre outras coisas, exclui a participação social, limitando o número de audiências públicas, e desvia os recursos do Fundurb - Fundo de Desenvolvimento Urbano, para garantir melhorias urbanas e, principalmente, subsídios para construção de habitação social. Esses recursos serão destinados para pavimentação e recapeamento de ruas. Em uma cidade que tem mais negros sem casa do que com casa, a prioridade dos gestores da cidade, homens brancos, é recapear ruas.
Se isso não é uma medida racista, em sua raiz, não sei o que seria.
Há muitas formas de expressão do racismo, para além das violências verbais e físicas, diretas ou indiretas. E as cidades são palcos de muitas delas, sobretudo quando olhamos para a maneira como a política urbana é historicamente conduzida, sem nenhum tipo de preocupação com os danos que definem a distribuição e permanência do contingente humano que as ocupa.
Seja por má fé ou por desinteresse, o chão das cidades, estruturador real e indissociável do racismo brasileiro, que segrega as cidades e faz a manutenção territorial das desigualdades, tem sido negligenciado e, por isso mesmo, alvo fácil para a prática do racismo que podemos dizer que é essencialmente urbano.
Podemos nos indignar com as violências produzidas com o racismo no futebol, no meio ambiente, no humor, nas artes, na afetividade ou nas mais diversas áreas das nossas interações sociais mas, se a cidade continuar estruturando fisicamente a exclusão da pessoa negra, através de políticas urbanas sorrateiras, que atendem a manutenção dos procedimentos históricos que dão corpo físico e palpável ao racismo, não podemos nos dizer antirracistas.