Por que até um anestesista pode ser um estuprador?

A castração química e a sociedade falocêntrica: a indignação não salva

12 jul 2022 - 17h01
O anestesista Giovanni Quintella Bezerra foi flagrado colocando o pênis na boca de uma paciente dopada na hora do parto
O anestesista Giovanni Quintella Bezerra foi flagrado colocando o pênis na boca de uma paciente dopada na hora do parto
Foto: Redes Sociais/Reprodução

“Não se engane! Até os gatos caseiros arranham”

Lalo Salamanca personagem de Tony Dalton em Better Call Saul

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Há aproximadamente duas semanas atrás, o Instagram, rede social que mais têm servido a alienação e propagação de falácias e deturpação de questões sérias, derrubou uma postagem onde eu falava sobre estupro da Klara Castanho. A postagem foi denunciada como discurso de ódio. Tudo isso porque estou há anos afirmando o óbvio: todo homem tem potencial para ser um estuprador ou todo homem é um estuprador em potencial. 

Apesar de ser uma afirmação chocante e assustadora, que mexe com os brios de muitos e muitas, ela é perfeitamente complementar ao conceito de “cultura do estupro”. Se há uma cultura, há um cultivo da ideia de que se pode fazer uso da sexualidade como arma de validação do poder hegemônico e supremacista e, consequentemente, há um sujeito apto e autorizado para materializar essa ideia.

Se quando falamos de gênero estamos falando de organização social a partir de diferenças biológicas que estabelecem códigos e condutas que caracterizam uma (suposta) subalternidade ou inferioridade, isso quer dizer que há uma hierarquia social determinando qual corpo manda e qual obedece. 

Daí emerge a figura do homem com poder acima da mulher. Os códigos e condutas que caracterizam essa assimetria relacional são muitos, mas um em especial é tão conhecido quanto consolidado no imaginário social: mulheres são sexo frágil. 

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Mas porque o homem? Mulheres não podem estuprar também? Até podem e o fazem em alguns pouquíssimos contextos. Mas os números de casos, que a propósito são inexatos, dado os casos que não são notificados por medo, apontam que mais da metade das ocorrências tem a mulher (e seus equivalentes sociais no ideário de fragilidade, como crianças por exemplo) sendo a vítima. Números desproporcionais de ocorrência indicam uma situação estrutural, que quer dizer que estamos falando de um conjunto de fatores que tornam a questão mais profunda. Mas em primeiro lugar é preciso entender que ato ou relação sexual e estupro são coisas diametralmente opostas. 

Uma relação sexual é um entrosamento físico entre pessoas, mediante atração física que desperta um desejo e acontece com concordância das partes envolvidas e não se limita a penetração peniana. Nisso que chamamos de relação sexual os envolvidos buscam satisfazer o desejo pela troca erótica com outro que o atrai e que o leva a obter prazer. Estupro é a violação premeditada de um corpo que é considerado coisa por outro corpo que se considera dono dessa coisa em alguma instância. 

Nesse caso o prazer está na invasão, no subjugo, na humilhação imposta ao outro porque o único desejo presente é o de poder. Qualquer ação de resistência e uso da autonomia do corpo considerado coisa desperta a reação violenta, autoritária e predadora do que se julga dono do “corpo/coisa”. 

Nossa sociedade foi construída a partir de uma ideia errada, doentia e individualista de poder. Essa ideia faz com que pensemos que poder é atributo individual adquirido por “merecimento” e deve ser defendido com violências diversas sempre que ameaçado. 

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Acreditamos e exercemos o poder como supremacia e/ou hegemonia criando um desnível entre grupos que se pensam merecedores desse poder doente e os que são considerados de menor valor e devem obedecer a essa lógica. Isso está em todos os lugares da sociedade, totalmente naturalizado. 

O corpo da mulher vem sendo considerado coisa passível de ser possuída. A começar pelos direitos reprodutivos que só é uma questão pública (e não de saúde pública!) porque implica na autonomia das mulheres em decidirem sobre seus corpos sozinhas. 

Se estupro fosse sobre relação sexual, desejo, prazer carnal, a hipótese de castração química faria sentido. Mas no nosso contexto ela só reforça que somos falocêntricos porque acreditamos que estupro é sobre sexo e sexo é apenas sobre penetração penis/vagina. Tanto que poucos entenderam como seria possível que o médico anestesista Giovanne Quintella Bezerra, estuprasse uma mulher que estava no momento do parto. Ele a estuprou por felação, ou seja, colocou o penis/falo na boca da vítima sedada. Mas poderia ter colocado qualquer outro objeto em forma de pênis ou apenas ter feito carícias erotizadas em seu rosto. Tudo que invade o corpo do outro sem permissão é estupro e o falo é a imagem que caracteriza a ideia de poder materializado. Todo homem se sente menos homem quando não tem ereção peniana ou não tem a imagem de poder dada pelo falo.

Mas estupro não é sobre sexo. É sobre relações de poder que usam o corpo, esse nosso espaço mais íntimo, a nossa zona de poder pessoal, para imprimir através da violência, a supremacia, a hegemonia do poder. 

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O cenário de um estupro é sempre o desejo (de poder) do homem se sobrepondo à autonomia da mulher através do domínio do espaço íntimo, o corpo. Se o estupro fosse uma frase, seria: “meu corpo é mais importante, e por isso manda no teu corpo”.

A ideia doentia de poder que organiza a sociedade e nossas relações pessoais, políticas e sociais é insaciável e alimenta a violência em que vivemos. Toda vez que corpos vistos como coisa dão sinal de retomada da autonomia, a força física é acionada e entra em cena.

Nas relações homem/mulher a cena se fantasia de relação sexual, mas isso é só um desvio de atenção para algo mais profundo: o insaciável desejo pelo poder.  Poder real é a força coletiva baseada no respeito mútuo à liberdade e aos limites do outro. 

Crime aconteceu no Hospital da Mulher, em Vilas dos Teles, em São João de Meriti, na região metropolitana do Rio de Janeiro
Foto: Poder360

A cultura do estupro pode ser entendida como um passaporte dado a todo e qualquer homem, já que a masculinidade é uma supremacia, uma hegemonia. O anestesista Giovanni Quintella recebeu esse “rape card” ou “passaporte para o estupro” desde que nasceu. Foi quando educaram ele para ser macho. Assim se deu com todos os homens.

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Ser macho é ser dotado de todas as possibilidades necessárias para exercer o poder e defender mediante força física a legitimidade desse poder. Há homens que por dignidade, bom senso, inteligência ou empatia resolvem não usar esse “passaporte”? Óbvio que sim. Mas eles sabem que têm e se dão o direito de escolher não usar. Mas não interferem muito na escolha dos demais, a medida em que não entendem de fato que o corpo da mulher não é coisa, não pode ser dominado ou possuído sem a permissão dela. Porque a sociedade ensina exatamente o oposto. Então, até que essas dinâmicas sejam entendidas e combatidas com toda a força da sociedade, a começar pela desconstrução da ideia viciada e doentia de poder que valida e sustenta violências diversas, todas as mulheres estarão em perigo constante porque todos os homens tem em mãos a permissão para estuprar. 

Infelizmente esse homem pode ser nossos pais, filhos, amigos, companheiros, vizinhos, avôs, sobrinhos, chefes, colegas de trabalho, irmãos, maridos de nossas amigas, médicos, o match do tinder, professores, artistas famosos que amamos, etc. 

Todo homem é um estuprador em potencial porque o potencial está na formação das masculinidades e lhes é dado ou despertado pelo estímulo do desejo de poder doentio que é validado pelo uso da força e pelo exercício do domínio dos corpos cuja inferioridade está “concretada” no imaginário social, no inconsciente coletivo da sociedade.

Como já dizia a canção do Skank “a nossa indignação é uma mosca sem asas, não ultrapassa a janela de nossas casas”. O que pode ultrapassar a janela de nossas casas e começar uma revolução transformadora é a cobrança massiva das masculinidades que nos cercam, no sentido de discutirem entre si a responsabilidade de cada um na desarticulação da mentalidade que ainda considera a mulher ora como coisa ora como sexo frágil e a cobrança mútua, dentro das relações interpessoais que os homens constroem tão bem entre si, de uma nova postura que desconstrua o “macho” para que o “homem” possa emergir e se entender como tão humano quanto a mulher. 

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Fonte: Redação Nós
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