No último dia 12 de junho último, Dia dos Namorados, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) divulgou uma pesquisa cujos números são assustadores o bastante para provocar, no mínimo, uma mobilização mundial onde se discuta de maneira séria o caos social em que vivemos. Esse abismo social é envernizado por medidas ineficientes e campanhas midiáticas que, na prática, não se convertem em mudanças significativas, já que estão muito mais focadas em disputas eleitoreiras por protagonismos e visibilidade individualista do que em inteligência a serviço das transformações sociais urgentes.
Segundo a pesquisa divulgada, que apresenta dados de diversos países, especificamente no Brasil mais de 85% dos brasileiros (E BRASILEIRAS!) têm pelo menos um tipo de preconceito contra mulheres. Mas como afirmei na última coluna, é preciso estar informada o bastante e com senso crítico beirando a chatisse para detectar que órgãos de referência reconhecida como a ONU, por exemplo, também devem ser problematizados em suas práticas e abordagens sempre que necessário, pois, o que a pesquisa chama de "preconceito" na verdade é machismo/sexismo ou o sistema de opressão e dominação que tem como principal característica a assimetria ou desproporções nas relações de poder entre o gênero/sexo masculino e feminino.
Então, é preciso dar o nome correto, já que não é apenas um nome, é a definição de um conjunto de ações que desenha um lugar de vulnerabilidade e precariedade para a pessoa mulher, cujo preconceito é apenas uma das manifestações de algo mais profundo e enraizado.
Te parece estranho falar “pessoa mulher”? É com certeza estranho e pouco usual. Mas é preciso, pois nos provoca a pensar sobre a veia jugular do machismo que alimenta e mantém todas as outras práticas: converter a mulher em coisas (guardadas as devidas interseccionalidades) e manter a ideia de que mulheres não são pessoas.
As coisas são feitas para atender quem a possui. Coisa não tem vontade própria e se não atender quem a possui é descartada. Geladeiras, carros, joias, roupas, vasos, louças, etc., são coisas. Vocês sabem o que fazem quando essas coisas não servem mais, não é mesmo? Agora imagina um sistema inteiro pautado por essa prática de conversão de pessoas em coisas, em objetos de uso, sem gerência ou domínio de si mesma, com a função única de servir quando, como e quem for necessário sob ameaça constante de ser penalizada caso não deseje se submeter ou se manter nesse lugar? Mesmo a mais desinformada das mulheres vai saber exatamente do que estamos falando quando disser a palavra mágica “NÃO”.
Vejamos um exemplo real e atualíssimo onde a “coisificação” naturalizada da pessoa mulher gerou mais uma das milhares de vítimas feitas em nome da posse.
O sargento Isaque Frederico Silva Ferreira, de 32 anos, assassinou friamente sua colega de trabalho, a sargento Stephanie da Silva Magalhães, de 26 anos, em uma festa de militares em Minas Gerais.
De acordo com o boletim de ocorrência registrado pela Polícia Militar, ele tinha interesse amoroso por ela, mas não era correspondido, já que a moça tinha namorado. Relatos de testemunhas nas redes sociais dizem que Stephanie era simpática e amável com todos e que ele teria cismado que havia algum interesse por parte dela. Até aí, ok. Quem nunca confundiu a simpatia e gentileza de alguém com paquera ou interesse amoroso que atire a primeira pedra.
Mas pesquise um pouco e saberá que o número de homens que assassinam mulheres com esse (suposto) motivo é esmagadoramente maior do que o de mulheres. Tanto que, em um passado não tão distante, isso era chamado de "crime passional". Conseguimos juridicamente pautar esses crimes como feminicídio ou crime por motivações ou consequência da violência de gênero.
Mas por que podemos afirmar sem hesitar que a rejeição não é a real motivação para esses crimes? Porque, embora uma rejeição de qualquer natureza seja dolorosa e gere frustração, não é motivo para encerrar a vida de quem rejeita. Mas o sentimento de posse, nas mentalidades distorcidas e moldadas pelo sistema machista, que ensina que mulheres não são pessoas e, sim, coisas passíveis de serem possuídas, sempre foi motivo e continuará sendo enquanto a sociedade não desconstruir esse ideário tão enraizado. E quando essa “coisa” diz ao “dono” que não o quer, ele se revolta porque internalizou que aquilo que o pertence é de seu total domínio e deve atender às suas vontades.
A descrição do assassinato dada pelos jornais e relatos em rede não deixam dúvidas. Foi um tiro no namorado, que ele via como rival e possuidor da “coisa” que ele decidiu que é sua, e vários disparos na moça, inclusive na cabeça, demonstrando um ódio muito mais profundo. Ele não odiava o rival, mas odiava a moça ou que ele a interpretava como de sua propriedade. Um caso de feminicídio evidenciando a misoginia que move as relações de poder entre homens e mulheres que é estrutural, cultivada e consolidada no senso comum social, assim como fica explícito na pesquisa da PNUD e em muitas outras que se queira conferir.
Em time que está ganhando não se mexe, diz o ditado. Isso significa que o sistema machista vai continuar fazendo seu trabalho de coisificar a mulher de todas as formas possíveis e imagináveis, pois, de um jeito ou de outro, todos que estão no topo dessas relações de poder estão lucrando algo com isso, conscientes disso ou não. E o time da transformação social e erradicação das opressões de raça, gênero e classe está tomando de 7 x 1 pelo menos dez vezes a cada hora de um único dia. Mas os discursos e as práticas não saem da superficialidade eleitoreira e midiática.
Então, pergunto: e aí?
De quantas vítimas do machismo precisamos para mudar as táticas desse jogo?
A maior homenagem que se pode prestar a toda e qualquer vítima de feminicídio é trabalhar séria e incansavelmente para que a misoginia, o machismo e todos os modos de opressão sejam erradicados, DE VERDADE, se não no mundo, ao menos na sociedade brasileira.