Se o racismo é estrutural e sistêmico, a formação das cidades brasileiras não poderiam ter outra dinâmica de divisão e funcionamento que não atendesse essa estrutura e esse sistema essencialmente racista. Sim, leitores, o racismo está também em nosso meio urbano, decidindo lugares físicos a partir dos lugares sociais. E o lugar da pessoa negra é o da exclusão, social e urbana. Mas no meio urbano isso se dá de modos ainda pouco discutidos. Tanto que certas medidas do poder público e muitas das políticas urbanas de origem e ideologia racista, passam despercebidas e mantém seu trabalho de reafirmação da discriminação e segregação socio-racial no espaço das cidades. A questão urbana está inevitavelmente ligada a todas as outras que compõem nosso quadro de desigualdades, como trabalho e renda, habitação, saúde pública, educação, cultura e esportes, entre outras adjacentes.
Há documentos históricos, estudos e pesquisas que nos fornecem muitos elementos que comprovam a exclusão da população negra do mercado de trabalho formal e a imposição social do empreendedorismo como única opção de sobrevivência, entre outras necessidades básicas negadas como habitação e educação. No pós-abolição a mão de obra escrava, naquele momento recém alforriada, não foi absorvida pelo mercado de trabalho urbano que se formava e tampouco foi mantida nos postos de trabalho rural e doméstico que antes exerciam, salvo raras exceções. Foram substituídos pelos imigrantes europeus que, em um primeiro momento, foram trazidos com todas as cotas e incentivos dados pelo governo português instalado no Brasil e, em um segundo momento, vieram por conta própria pensando nas oportunidades que aqui surgiriam. O fato é que eles ocuparam todas as posições que antes eram exercidas pela negritude escravizada, mas não na condição de escravos. Quer dizer, quando o trabalho passa a ser remunerado, se torna um privilégio branco.
Isso fazia parte da política de branqueamento do pós-abolição, que seguia a lógica colonial que pensava: "Ok, já que não podemos matar todos os ex-escravos, vamos embranquecê-los até que sejam finalmente dizimados”.
Essa lógica de morte simbólica não se limitou ao mercado de trabalho apenas. Ela se ramifica nas mais variadas áreas que estruturam nossa existência em sociedade, tais como habitação, educação, saúde, mobilidade, segurança pública, etc.
Tanto na habitação quanto no mercado de trabalho e diversas outras áreas os efeitos dessa exclusão estão reverberando e se reinventando, debaixo do nariz da sociedade e sem nenhuma ação eficiente dos entes públicos para erradicá-las, ao contrário, estamos diante de novas formas de exclusão e novos aparelhamentos racistas, uma vez que as opressões que construíram nosso país não são estáticas, são dinâmicas e se movimentam de acordo com o andamento da resistência, compondo verdadeiros contra-ataques que passam despercebidos por aqueles que não compreendem a sagacidade da questão racial brasileira.
Um dos efeitos históricos que reverberam em forma de tópicos que juntos formam o que chamamos de desigualdades é o contingente de pessoas vivendo em situação de rua, ou seja, nos extremos da desigualdade habitacional.
Só na maior metrópole da América Latina, São Paulo, temos mais de trinta mil pessoas sem moradia alguma. Isso sem contar no déficit habitacional como um todo, que soma as habitações precárias, a falta de titulação que comprove propriedade, dificuldade extrema de adquirir imóveis com preço compatível ao salário do trabalhador, preço dos aluguéis, etc.
No mercado de trabalho a coisa não é diferente. Há alguns meses, os grandes veículos de comunicação de massa alardearem que o estudo do PNAD apontava uma baixa nas taxas de desemprego no país. Mas esqueceram de especificar em que raça e gênero essa baixa foi observada. A negritude, sobretudo as mulheres negras, ainda são maioria nos altos índices de desemprego do país, que piorou com a pandemia do COVID-19.
Então temos um cenário nada animador nas ruas de São Paulo composto pela somatória de pessoas que vivem em situação de rua e pessoas desempregadas em busca de uma oportunidade ou em trabalho ambulante, nos faróis, nos metrôs, na porta de estabelecimentos públicos como hospitais e escolas, por exemplo. Mas a questão é que a permanência da negritude nas ruas das cidades é histórica e conectada a diversos outros fatores, como as políticas de branqueamento, por exemplo, que formaram uma triangulação institucional para manter a negritude nessa condição.
Mas como temos uma nação que é negacionista com sua herança colonial ainda presente e com o racismo como formador de todas as desigualdades, temos políticas eugenistas e higienistas (principais movimentos de eliminação da presença negra no país) sendo recriadas à revelia.
É o caso da Smart Sampa do prefeito Ricardo Nunes, por exemplo, que a partir da necessidade de se erradicar a violência urbana (que é um dos efeitos colaterais do racismo brasileiro) camufla intenções escusas em ações desastrosas que tem um terrível lastro histórico.
As políticas de segurança pública são fundamentais. Mas não podem ser propagadoras ou terem vínculo explícito com o histórico eugenista que a formação de nossas cidades apresenta e está no cerne das segregações e discriminações socioespaciais, como é o caso da “Smart Sampa” que de smart (inteligência, em inglês) não tem nada, mas de racista tem tudo.
Nessa semana, o prefeito Ricardo Nunes abriu edital para seleção de empresas que devem prestar o serviço de monitoramento e reconhecimento facial por câmeras de seguranças que serão espalhadas pela cidade.
Essa tecnologia tem sido amplamente combatida e denunciada por especialistas em questões raciais e inteligência artificial. porque em sua esmagadora maioria vem se revelando como ferramenta de aprofundamento do racismo estrutural e das práticas de discriminação racial.
Em trecho do edital diz que o sistema deve “rastrear uma pessoa suspeita, monitorando todos os movimentos e atividades''. Há uma frase racista muito conhecida que diz o seguinte:
“Preto parado é suspeito, preto correndo é ladrão”. Portanto, não é difícil concluir quem deve ser monitorado. Mas se ainda restar dúvidas, temos outro trecho do edital que diz “A pesquisa deve ser feita por diferentes tipos de características como cor, face, roupas, forma do corpo/aspecto físico e outras características”.
Em outro trecho do edital sinaliza que “o monitoramento também terá que apontar situações classificadas como “vadiagem e permanência”, ou seja, informar às autoridades sobre pessoas que permaneçam muito tempo num mesmo local ou apresentem comportamento considerado suspeito.
A “vadiagem” é considerada contravenção pelo Código Penal de 1941. Mas ela não é nova. O conceito de vadiagem aparece pela primeira vez na lista de ordenação urbanística nomeada “Código de Postura” que passou a vigorar a partir de 1886 e indicava um conjunto de regras que até certo ponto, serviam aos propósitos organizativos do espaço urbano no período colonial e nas cidades em formação no pós abolição. Esse arcabouço jurídico parecia inocente mas, escondia entre seus apontamentos, medidas eugenistas e higienistas, que eram continuação do processo de branqueamento e erradicação da presença negra das cidades e do país.
Tendo em vista esse lastro histórico gravíssimo expresso em um edital (inclusive com palavras similares) mas, que evidencia a mentalidade ainda colonial e supremacista presente em nossos meios, o mínimo que devemos cobrar severamente é que nada seja feito até que a sociedade discuta a exaustão SE essa tecnologia pode ser implantada e, principalmente, em que termos. Do contrário estaremos dando mais um passo atrás rumo a um passado racial obscuro cujos efeitos nocivos sequer foram devidamente compreendidos para serem verdadeiramente dizimados.