Ser sensual é ser Gal, a senhora da onipresença

Podemos dizer sem medo de ser clichê que Gal Costa era senhora de si, a própria mulher livre

9 nov 2022 - 15h45
(atualizado às 16h34)
Gal Costa morreu aos 77 anos
Gal Costa morreu aos 77 anos
Foto: Reprodução/Instagram

Se somos o que fazemos, pelo tamanho e imponência de tudo que realizou, podemos dizer que Senhora Gal Costa, nascida Maria da Graça Costa Penna Burgos, trouxe para o cenário musical duas características fundamentais da sua personalidade sofisticada: a força estranha e a sensualidade irrefreável. Sempre ouvi referência à sensualidade natural da Gal Costa. Crescendo entendi do que se tratava. Gal foi símbolo de sensualidade no sentido estrito da palavra: a capacidade de compreender, trabalhar e transmitir o sentido real das coisas. É um poder cada vez mais raro. Pessoas sentem, somos movidos a sentimentos e sensações. Mas não percebemos, nem entendemos e, frequentemente, evitamos assumir, compreender e expressar o que sentimos. Daí somos menos do que poderíamos ser. 

São esses dois traços de personalidade que costuma-se atribuir a mulheres pessoalmente poderosas e que as fazem ser também muito temidas e evitadas. 

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E essa era a provocação fundamental contida na pessoa de Gal Costa, a denúncia de uma contradição da sua existência: se o mundo não gosta de mulheres pessoalmente poderosas, como Gal Costa conseguiu se consolidar como figura única, fundamental e, portanto, poderosa para além dos limites da sua arte? 

Resposta aparentemente simples, mas profunda demais: sem se preocupar em ser, apenas sendo. Sendo e inspirando todos a serem também. 

Mas ser o que? Ser o que se é, oras!

Então, podemos dizer sem medo de ser clichê que Gal Costa era senhora de si. A própria mulher livre. Quem é livre ganha de presente a onipresença. A força estranha. A sensualidade irrefreável. A senhora. Senhora não exatamente como pronome de tratamento atribuído aos mais velho, mas no sentido mais amplo de poder pessoal, de força, de liberdade de ser e estar no mundo sem pedir licença nem dar justificativas por estar aqui, nessa terra ainda provinciana, que exige das mulheres o oposto do que Gal Costa foi. Senhora como na canção composta por Gil e Torquato defendida por ela em 1966, no I Festival Internacional da Canção: 

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Minha senhora

Onde é que você mora?

Em que parte deste mundo?

Em que cidade escondida?

Dizei-me, que sem demora

Lá também quero morar

Minha Senhora, Gilberto Gil e Torquato Neto

Como pessoa pública jamais permitiu que invadissem sua vida, sua intimidade. Jamais permitiu que a julgassem, jamais permitiu que a confinassem no lugar da beleza da voz e da aparência. Imagina! Muito pelo contrário. Gal Costa não se deixou limitar. Quando entoou a lendária canção de autoria de Cazuza, Brasil, em 1988, o fez com a voz, o corpo e a alma, se colocando com tamanha autoridade que virou exigência popular: todo mundo queria saber qual era a cara corrupta do país. Isso é ser sensual. 

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Do mesmo modo que duas décadas antes, em 1967, no festival da Record, disse também com a voz, o corpo e a alma que não tínhamos tempo de temer a morte. Dissipou o medo e preparou a aura rebelde que lutou pelas “Diretas Já”. Isso é ser sensual. 

Como pessoa pública, Gal Costa jamais permitiu que invadissem sua vida, sua intimidade
Foto: @galcosta

Agora, em 2022, não titubeou e nem recuou do lugar de autoridade para apoiar a recondução do Brasil para os caminhos da democracia. Força estranha. Sensualidade irrefreável. Talvez por isso seduzia tão distraidamente que ninguém percebia direito quando e como, mas, de repente, já estava fisgado pela sua onipresença. Isso tem uma importância tão grande para os tempos atuais, em que temos muito discurso de independência e emancipação, mas estamos sempre presas ao olhar e achismo do outro, limitadas pelo medo da política do cancelamento, reduzidas pelas disputas e competições por protagonismos vazios de significado mas cheios de armadilhas sociopolíticas. 

Mulheres da geração da Gal Costa não precisavam se dizer lutadoras pró-liberdade feminina. Elas inclusive questionaram esse “feminino essencial”, tão limitador. Muitas sequer chegaram a pensar no significado da palavra feminismo, mas todas, inclusive Gal Costa, subverteram os lugares pré-estabelecidos e se posicionaram onde quiseram. Viveram suas liberdades individuais com tamanha despretensão que devemos tomá-las como estudo de caso ou aulas naturais de como contrariar as estruturas sem fazer muito alarde e sem cair em suas armadilhas predatórias. 

Gal Costa ensinou a toda e qualquer pessoa que quis aprender que ser sensual, para além da aparência, dos trejeitos, da voz de veludo é expressar todas as ideias, sensações e sentimentos que o corpo e a existência permite, sem contrariar o que o nosso DNA pessoal estabeleceu, mas sem se curvar totalmente diante do que ele pautou. No caso dela, sendo doce e bárbara, rebelde e despretensiosa ao mesmo tempo. Ser sensual é não se reduzir a um só lugar, não parar no tempo e nem maldizer sua passagem com discursos de aceitação que denunciam nas entrelinhas conflitos internos e amarguras pela força dele que é superior a nossa, como tem sido feito na onda anti-etarismo. Gal Costa foi tão livre que sequer envelheceu.

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Ser sensual é não admitir e nem se encaixar em rótulos e lugares. É não precisar de discursos por emancipação e, sim, vivê-la em tempo real. Sem pedir licença e nem se justificar por ser ou ter sido. Ser sensual é ser Gal.

Fonte: Redação Nós
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