Na sociedade de 2022, pós pandemia e sedenta por entender e processar o ‘novo normal’, George Floyds já não motivam mais textões nem alavancam vendas de livros feministas. Isso nem tem sido mais assunto. Abrimos a semana com a narração de uma execução em tempo real de um jovem negro de 18 anos dentro da Comunidade do Jacarezinho. Mas isso não perturba o novo normal que curte o êxtase da volta do Carnaval, mesmo fora de época. E o sintoma é a rejeição a representatividade como estratégia de jogo desgastada.
O que perturbou, mesmo, foi o Rei da Padaria: Arthur Aguiar. Ele concentrou em si a projeção de ódios e angústias ainda mal resolvidos no inconsciente coletivo, sobretudo das mulheres moldadas pela sociedade patriarcal que acreditam no amor romântico. O que mais se falou dele foram sobre as traições e, na esteira disso, o perdão da esposa traída.
Em tempos de amor líquido, apps de paquera e discussões sobre poliamor e monogamias compulsórias, o trauma da traição em relacionamentos heteronormativos continua torturando mulheres. Só que quem não trai nessa sociedade do consumo inconsciente? Traídos e traidores somos todos nós em algum momento. Mas porque isso só é um problema quando está no âmbito das relações monogâmicas? Será que a resposta dessa pergunta mudaria o resultado da final do Big Brother Brasil 2022? Ao que parece, grande parte da sociedade defende ou rejeita de acordo com o que lhe oferece o alívio da culpa. Pessoas traem, então é melhor perdoar para ser perdoado.
A vitória de Arthur Aguiar nos diz que ser bom ou mau não interessa pro jogo e nem para a vida. Interessa fornecer uma identificação que nos leve a absolvição inconsciente dos nossos erros ou servir de mural para a projeção do mundo irreal que nos permite fugir das questões sérias.
Do contrário G e PA seriam os grandes vitoriosos do ponto de vista dos valores morais e da ruptura de estereótipos. Cada um deles representa duas faces do que poderia ser uma só pessoa: suavidade e firmeza, altivez e vulnerabilidade, inteligência emocional e inteligência racional.
E ambos construíram as melhores relações humanas dentro da casa. Se isso fosse suficiente para a sociedade, ser bom ou sem nenhum erro aparente, eles teriam ganhado o prêmio. Mas isso representa um incômodo: dois homens negros “normais” ou emocionalmente saudáveis? Isso ofenderia a sociedade narcisista que exige pirotecnias comportamentais.
Independente da raça, esse conceito social responsável por grande parte das desigualdades da sociedade brasileira, somos pessoas. Mas justamente a raça é o que tira do não branco o direito de ser pessoa, assim como o Arthur é: com todas as complexidades possíveis. Nossa humanidade é reduzida a ‘ser negro/a’. Não há motivos para odiar esse ou aquele participante, pois como diria Don Corleone: “O ódio atrapalha o raciocínio.”
O Grande Irmão Brasil é uma paixão nacional?
Fim da edição de um dos programas mais mobilizadores da opinião pública de todos os tempos, o BBB. É uma paixão nacional? Seguramente podemos dizer que sim. A palavra Paixão vem do Latim Passio que significa sofrimento, ato de suportar, e do Grego Pathe que significa sentir (originalmente, tanto coisas boas como ruins). Assim, a vida desta palavra em Latim se resumia a designar um conjunto de sensações negativas. Com o tempo, entretanto, lá pelo século XIV, ela passou a querer dizer também forte emoção, desejo, e mais tarde ainda, entusiasmo, grande apreço, predileção.¹
Então se observarmos criteriosamente as reações polarizadas que o programa desperta, constatamos que não é nenhum exagero dizer que o BBB tem sido, há duas décadas, uma grande paixão nacional, onde as pessoas se exaltam, torcem contra e/ou a favor, esbravejam, deliram, se iludem, julgam, condenam, cancelam ou exaltam figuras, se alegram, se vêem, rejeitam, se desgastam e dão vazão à curiosidade nas suas mais variadas formas sem ter que arcar com o infortúnio da culpa ou com o constrangimento dos excessos. Mas precisamos ter em mente, partindo do significado da palavra que paixão não é amor, ou seja, a paixão é destrutiva e diz mais sobre o que nos falta do que supõe um vã paredão ou prova do líder.
O BBB permite que o público esqueça que são pessoas jogando com suas complexidades por um prêmio em dinheiro e fama, muita fama. Mas, e quem não curte? Ora, também está, irremediavelmente apaixonado. Tanto que na minha recente experiência com a abordagem desse programa nas redes sociais, literalmente, chovem comentários raivosos, indignados com a existência de tamanho “lixo” televisivo. Repetem a exaustão a pergunta: “Como dão audiência para esse elemento de alienação?” Sem se dar conta de que o impulso incontrolável de fazer um comentário, mesmo que negativo, é sintoma óbvio de que a pessoa foi fisgada pelo olho do Grande Irmão. Principalmente tendo em vista que essa mesma pessoa na maioria das vezes não busca, não engaja e nem dá a oportunidade de conhecer e exaltar conteúdos mais “cultos” (seja lá o que ele/a considere relevante enquanto cultura).
Muitos consideram entretenimento, mas é muito mais. É um muro usado pelo inconsciente coletivo da sociedade para projetar suas questões mal resolvidas ou para entorpecer suas angústias mais íntimas e inconfessáveis. Como são as paixões em que nos envolvemos. O BBB cumpre o papel de ‘ópio do povo’ que o futebol e a novela ocuparam em outros tempos. Só que aqui há um perigo oculto: chamam essa categoria de programa de reality show ou ao pé da letra show da realidade.
Só que é irremediavelmente irreal, sobretudo porque tem intenções diversas pautando as reações que se pretende extrair dos participantes e...do próprio público.
Nos últimos tempos, com a ascensão dos discursos que emergiram das lutas sociais viabilizados pelo espaço midiático dos veículos de comunicação de massa, o BBB abriu na sala de estar da sociedade brasileira, um fatídico espaço para discussões sobre os porquês das desigualdades sociais. Falou-se sobre machismo e misoginia, lgbtqia+, fobia, racismos, luta de classes e comportamento humano na sociedade. A veemência das rejeições ou a contundência das defesas são sintomáticas denúncias do mal-estar social que na realidade não sabemos como resolver. E as torcidas são pautadas pelo desconforto em se identificar com situações familiares que causa em alguns ou pelo desejo de mudança social e comportamental que causa a outros.
Precisamos, sim, rever nossas paixões que destroem a possibilidade de análises libertadoras e nos perguntar, coletivamente, o que realmente nos motiva enquanto sociedade. E “flopado” ou não o Grande Irmão se dispõe a ser o espelho onde podemos enxergar, não a sociedade real, mas a sociedade de valores irreais em que estamos vivendo.