Há algum tempo que produções de true crime (crimes verdadeiros), ou baseados em fatos reais, vem ganhando gosto popular. Dessa vez não foi diferente. A Netflix lançou recentemente uma série chamada “Dahmer: O canibal americano” que vem fazendo muito sucesso. Foi a mais assistida no último fim de semana na plataforma de streaming e com isso foram levantados alguns debates. Um deles é sobre o privilégio branco, e de como ele possibilita que pessoas brancas não sejam alvo de desconfiança, ainda que os indícios de crime estejam escancarados. Aviso: contém spoilers.
Nos primeiros cinco segundos a série já deixa nítido para o telespectador como a compreensão sobre questões raciais são importantes para o entendimento integral da trama. O começo mostra uma reportagem denunciando a agressão de policiais brancos a um colega negro. Os roteiristas acertam muito nesse início porque, a partir daí, grande parte da história terá uma conotação acerca do racismo. Da opção do local onde o assassino mora, passando pela escolha das vítimas, até de como o sistema jurídico o tratou, tudo, absolutamente tudo, passa pelo espectro das benesses que pessoas brancas têm.
Importante salientar que privilégio branco não tem o intuito de dizer que a vida de todas as brancas e brancos são fáceis, é sobre salientar que a vida delas não tem a cor da pele como impeditivo social.
Na série, o serial killer, que dá nome a trama, tem largo favoritismo por vítimas não brancas. Sendo pessoas negras o seu alvo preferencial, e apesar de isso não ser confirmado pelo assassino, fica óbvio que ele não só tem ciência do seu privilégio racial, como molda todas as situações para que isso seja fator determinante para ele não ser pego.
O bairro onde ele escolhe morar é um majoritariamente negro, onde a polícia dá pouca assistência e trata a população com descaso. Raras vezes quando aparece, o enxerga com olhar condescendente por ele está vivendo naquele meio. Algo bem similar ocorre um pouco mais à frente, quando Jeffrey Dahmer tem sua pena de importunação sexual atenuada, com o juiz dizendo que um jovem com as características dele tem direito a uma segunda chance.
O descaso da polícia é parte determinante para toda a produção. A negligência e o racismo dos policiais foram fatores importantes para que as mortes em série ocorressem. Eles não só se negavam ir ao local dos crimes, como, em dado momento, fazem chacota com o pai de uma das vítimas.
Já preso e condenado, Jeff é bombardeado por cartas de admiração, apoio e carinho, chegando até a vender seu autógrafo para alguns desses fãs. O curioso é que enquanto pessoas negras lutam para serem aceitas, sendo agradáveis e, muitas vezes, subservientes, pessoas brancas, ainda que assassinas, gozam da admiração e desejo por muitos.
O privilégio branco e o racismo foram os pilares para que os assassinatos fossem ocorrendo. O assassino não era um cara cuidadoso, inteligente e metódico como são a maioria desses personagens quando trazidos para a ficção, muito pelo contrário, ele era disperso, descuidado e não fazia muito esforço para esconder suas vítimas. O racismo estadunidense fazia com que poucos esforços fossem dedicados para descobrir os desaparecimentos de jovens negros.
Não à toa o perfil da maioria dos assassinos em série são homens brancos. Até porque no maior número dos casos como esse, precisa ter uma cegueira da sociedade racista para que as condutas não levantem suspeitas. Pessoas negras, diferente de brancas, estão o tempo todo tendo que provar a sua inocência, mesmo que essas não tenham agido de forma suspeita. As mesmas condutas vindas de pessoas negras e brancas levantam questionamentos e interpretações totalmente distintas.
A sociedade fornece uma liberdade assistida à população negra, enquanto a verdadeira liberdade só quem goza é a população branca, sobretudo, não periférica. A verdade é que sem os afagos que a sociedade dá a homens brancos, casos como esse nunca iriam para frente. Se fosse ele um homem negro, na primeira sentença já teria pego uma condenação rígida e dificilmente sairia do sistema prisional.