Os reality shows, assim como outros produtos da indústria cultural, sempre fabricam personagens na tentativa de criar um sentimento no público para que essas múltiplas sensações se transformem em audiência, engajamento e menções nas redes sociais. Para isso ocorrer, por vezes, eles usam a edição para criar um roteiro onde existem o bom e o mau; o engraçado e o ranzinza; o inteligente e o bobo, entre outros arquétipos que ajudam a formar uma historinha bem diagramada.
Essa configuração é formatada, na maioria das vezes, da maneira que os participantes se portam dentro desses programas. Logo, os traços comportamentais desses participantes vão sinalizando para produção e direção quem pode ocupar determinada posição dentro do reality.
É interessante notar que determinados comportamentos recebem diferentes interpretações dependendo de quem os faça. Uma pessoa negra, ainda que se comporte exatamente igual a uma pessoa branca, jamais terá o mesmo julgamento que ela, já que, graças ao racismo, o imaginário coletivo tende a ser mais condescendente com erros de pessoas brancas.
Karol Conka durante o BBB21 falou uma coisa que, à época, até por todo o contexto empregado naquele momento, foi ignorado pela maioria das pessoas. Ela disse: "O público brasileiro, para aceitar uma mulher preta, ela tem que ser submissa”. E eu concordo muito com ela, e já concordava nessa época apesar de, a todo momento, criticar seus equívocos, sobretudo quando eram direcionados a outras pessoas negras.
Minha análise sobre essa colocação da Karol parte do período escravagista do Brasil. A escravizada negra, que cuidava da cozinha e cozinhava maravilhosamente bem, a ama de leite que deixava seus filhos para poder cuidar dos brancos, todas elas bem submissas e prestativas, mas não por índole, e sim por imposição. Imposição essa que vinha de castigos, maus tratos e etc. Figura essa que é bem representada pela Tia Nastácia da obra cheia de racismo do Monteiro Lobato chamada de Sítio do Pica Pau Amarelo.
Mulheres negras e brancas têm leituras bem diferentes da sociedade. Eu já falei mais sobre isso nos textos Corpo das mulheres negras ainda é tratado como público e descartável e Como os estigmas racistas sobre as mulheres se perpetuam na sociedade. Mas fico muito contente quando um reality ajuda a escancarar esse abismo de interpretação que existe quando há uma diferença racial entre as mulheres
Lumena é um outro exemplo que caberia nessa comparação. Mulher preta que, apesar dos seus erros, trouxe várias pautas importantes para o horário nobre da TV. Como, por exemplo, colorismo quando tentaram invalidar a negritude do Gil do Vigor. E, para quem não lembra, teve uma promotora que pediu que o título dela de psicóloga fosse cassado. Esse movimento foi pautado nas redes sociais com pessoas dizendo que as atitudes dela não condiziam com a sua profissão.
Deolane Bezerra, participante do reality A Fazenda, teve vários comportamentos que ultrapassaram, e muito, as atitudes tanto de Lumena quanto de Karol. Até ameaça de quebrar a cara de uma outra participante aconteceu e ela não ganhou título de raivosa como geralmente fazem com mulheres negras. Por mais que haja também um movimento contrário a ela, não é algo unânime como foi com outros participantes pretos e pretas ao longo desses anos de reality. Na última vez que ela foi a júri popular, ela não ganhou por muito, muito pouco, diferente da Karol que foi eliminada com 99% dos votos.
Esse texto não é sobre atacar a Deonale e cancelá-la e imputar a ela as mesmas consequências que pessoas negras sofrem, muito pelo contrário, esse texto é apenas uma tentativa que a sociedade, de maneira geral, trate pessoas negras, sobretudo mulheres, da mesma forma que tratam as pessoas brancas. Não a resumido a erros, tendo empatia e acolhimento ainda que haja erro. Vamos refletir acerca das interpretações que damos a comportamentos idênticos vindo de pessoas de raças distintas. A partir dessa análise, talvez, possamos compreender como pessoas negras são canceladas de forma injusta e covarde ao longo dos anos.