Diferente do que muitos supostos intelectuais pensam, o Carnaval sempre foi um lugar de intelecto - talvez não do intelecto eurocêntrico que muitos amam e cultuam, mas da inteligência de pessoas negras que construíram seus saberes e conseguiram passar adiante, apesar de todo racismo brasileiro.
Erra quem pensa que foi em 2022 que as escolas de samba aumentaram o tom de crítica social, já que o sambódromo sempre foi um local de denúncias contundentes.
Este ano fomos agraciados com vários sambas-enredos inspirados na cultura africana, sobretudo o candomblé. Não por acaso o racismo religioso veio à tona com questionamentos sobre a necessidade de falar o candomblé e houveram ainda os que diziam que "Carnaval é festa do povo, não deveria falar só de macumba". Vale lembrar que o Carnaval já abordou outras religiões também, inclusive o cristianismo.
Em 2020, por exemplo, a Mangueira veio com uma crítica racial perfeita usando o ícone do cristianismo para fazê-la. É verdade que o Jesus negro também não agradou os mesmos que hoje tecem comentários contra o candomblé. A imagem do jovem negro naquele lugar causou imensa repulsa aos fervorosos que sequer quiseram entender a crítica feita pela escola.
Colocar Jesus como um jovem negro era colocar Jesus como a população que é a mais morta no Brasil. Colocar Jesus como jovem negro foi colocar o ícone do amor ao próximo em uma sociedade que odeia jovem preto. Colocar Jesus como jovem negro fez lembrar que Jesus era pobre e que essas igrejas megalomaníacas se afastam do que é ser cristão.
O jovem negro esteve lá para lembrar que religião não é julgamento, mas sim acolhimento. Jesus negro foi para mostrar que mudar a imagem de Jesus para branco não ofende, mas para negro é blasfêmia. Jesus negro serviu para escancarar racismo, falsos profetas e o ódio do povo pela raça que construiu o Brasil com muito sangue e suor.
A cultura negra sofreu dezenas de tentativas de apagamento ao longo dos anos no Brasil. Ela só é aceita quando sofre uma tentativa de embranquecimento ou quando pessoas brancas querem usá-la para ganhar dinheiro. Imaginem se esses soubessem que todas as escolas de samba têm como guia um Orixá? Imaginem se esses soubessem que o samba, o Carnaval, o ritmo e absolutamente tudo sobre a essência das escolas de samba é sobre candomblé, orixás e macumba? A quem interessa esse apagamento cultural da população negra?
As religiões de matriz africana sofrem uma perseguição brutal no Brasil. Terreiros são invadidos, destruídos, seus membros sofrem agressões físicas e verbais, a maioria das denúncias de intolerância religiosa são feitas por pessoas do candomblé. O que as religiões de matriz africana sofrem é uma caça às bruxas.
É algo tão covarde que não dá para considerar intolerância religiosa. É racismo religioso, como bem pontua o babalorixá Sidnei Nogueira. É como se a intolerância religiosa fosse um ataque à crença do outro, enquanto o racismo religioso ataca o indivíduo como um todo.
É comum pessoas serem expulsas de casa após a iniciação no candomblé ou sofrerem retaliações, direta ou indiretamente, no trabalho por causa da sua religião de matriz africana. De modo geral, vemos pessoas que tocam suas vidas com base nas tradições africanas sofrendo de maneira muito mais dura e cruel do que as demais religiões.
É muito importante que cada vez mais informações cheguem às pessoas. Exu não é o demônio, até porque demônio é uma criação cristã que nem existe fora do cristianismo. A macumba não existe para destruir sua relação, não foi “o trabalho” que separou seus pais. Nenhuma pessoa que cultua Orixá precisa ter o demônio tirado de si.
O que precisa ser tirado da nossa sociedade, com urgência, é todo racismo e intolerância criada sobre o povo de terreiro.