Eu prometi a mim mesmo que não iria criticar nada em pelo menos seis meses do governo do PT. Não só porque eu sou grato às políticas públicas, mas também pelo fato de termos saído de quatro anos de trevas. Contudo, com a fala do presidente Lula que romantiza a miscigenação e a escravização no Brasil não dá! E, por mais que alguns irão dizer que ele citou que isso foi uma desgraça, não muda o fato que, em seguida, ele falou que isso causou uma coisa boa.
Para quem não viu, nesta segunda-feira, 13, o presidente Lula discursou na 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Ele disse: "Olha, toda a desgraça que isso causou ao país, causou uma coisa boa, que foi a mistura, a miscigenação. A mistura entre indígenas, negros e europeus, que permitiu que nascesse essa gente bonita".
Coisa boa? Será mesmo?
Para quem não sabe, quando os portugueses começam a saquear o Brasil, eles chegam de forma cordial. Diferente do que aprendemos no colégio, os povos originários dessa terra não eram fracos e não tinham medo dos brancos. Era o contrário. Os brancos não conheciam as tecnologias dos tamoios, guaranis, tupiniquins, tabajaras e etc. e morriam de medo dos seus saberes. Foi por isso que eles chegaram bem cordiais e oferecendo presentes.
Quando os portugueses se estabelecem aqui e vão começar a exploração mais voraz da terra, eles começam a desembarcar em grande número e, naquela época, mulheres eram proibidas nas caravelas, logo só chegavam aqui homens. Com o advento da escravização de povos indígenas e a chegada exclusiva de homens da Europa, a “mistura” do Brasil se inicia com o estupro das mulheres originárias.
Quando começa o comércio de pessoas no Atlântico, o Brasil passa a ser o principal comprador de seres humanos. Com isso, as africanas entram para estatísticas de mulheres vítimas de estupro no Brasil colônia. Isso durou muito. Mulheres brancas só chegam em grande escala por aqui quando a coroa portuguesa se muda para o Brasil. Isso já tinha uns 300 anos de escravização.
Os absurdos que envolvem a miscigenação do Brasil não param por aí! Você já ouviu falar em eugenia? É um termo criado pelo francês Francis Galton que tem como base selecionar seres humanos com base em suas características físicas, ou seja, para valorizar o fenótipo branco em detrimento aos demais. No Brasil, o movimento eugenista chegou através da “elite” intelectual brasileira como solução para o desenvolvimento do país. Na leitura deles, embranquecer a população era o único método para que isso ocorresse.
A pesquisa da professora Maria Eunice Maciel (UFRGS) enumera algumas das ideias de Renato Kehl, o pai da eugenia no Brasil: “segregação de deficientes, esterilização dos ‘anormais e criminosos’, regulamentação do casamento com exame pré-nupcial obrigatório, educação eugênica obrigatória nas escolas, testes mentais em crianças de 8 a 14 anos, regulamentação de ‘filhos ilegítimos’ e exames que assegurassem o divórcio, caso comprovado ‘defeitos hereditários’ em uma família”.
Aí eu te pergunto: no país que tinha recentemente acabado com a escravidão, onde teve lei que proibia negros de terem terras e irem para escola, que tinha a lei dos vadios e capoeiras, onde o furto famélico era crime, quem eram esses “criminosos” que iriam ser esterilizados? A POPULAÇÃO NEGRA!
O estado brasileiro acreditou bastante nesses ideais racistas. A imigração europeia para o Brasil, na segunda metade do século 19 e início do século 20, é fruto dos anseios de embranquecer a população. Para isso, eles deram terras, sementes, subsídios financeiros, animais, ferramentas para plantio, entre outras coisas para os imigrantes. O governo brasileiro acreditou piamente que essa população branca que chegara ao Brasil iria se “misturar” com a população negra e isso iria clarear a população gradativamente. O quadro "A Redenção de Cam", do espanhol Modesto Brocos, era o imaginário das elites acerca do branqueamento no Brasil.
Não preciso nem dizer que não deu muito certo, né? Eles esqueceram que trouxeram brancos racistas e que eles jamais iriam querer se relacionar com pessoas negras. Hoje em dia, a gente consegue ver tranquilamente reflexos dessa época. Temos o sul do Brasil branquíssimo, temos comunidades em São Paulo que pouco se misturam. Já reparam que até hospitais e colégios foram criados inicialmente para atender uma determinada galera? Hospital Sírio Libanês, Hospital Espanhol, Hospital Português e etc. Hoje, muitos deles não se restringem aos seus países, contudo podemos observar que seguem sendo ambientes majoritariamente brancos.
Eu acredito muito que o plano de eugenia do Brasil ainda está em curso. Quer ver? Pessoal de São Paulo, Alto de Pinheiros é um bairro de gente branca, né? Sabia que a expectativa de vida lá é de 81 anos? E o Perus é uma região majoritariamente negra, certo? Sabia que a expectativa de vida lá é 61 anos? Será que essa diferença de 20 anos refletirá ao longo dos anos sobre a população? E isso se aplica em vários outros setores como por exemplo mortes violentas, violência obstétrica, menores salários, falta de acesso a saneamento básico, menor índice educacional. Todas essas estatísticas são lideradas pela população negra!
Então, meu estimado presidente Lula, troque mais ideias com Silvio Almeida, Margareth Menezes e, principalmente, Anielle Franco. O senhor, infelizmente, é reflexo de um cronograma escolar que exalta os algozes e silencia as vítimas. A miscigenação no Brasil é fruto de muito sangue e suor de pessoas escravizadas. A “mistura” deveria ter ocorrido, por exemplo, a partir da globalização, sem estupro, violência e eugenia, mantendo assim intacta a dignidade do outro.