Toda vez que está um "climinha gostoso de chuva" eu, hoje, lembro das pessoas em situação de rua. As pessoas que passam as noites dormindo nas ruas, sob marquises, praças, embaixo de viadutos e pontes, são consideradas em situação de rua. Além desses espaços, também são utilizados locais degradados, como prédios e casas abandonados e carcaças de veículos, que têm pouca ou nenhuma higiene. A maioria dessas pessoas acaba nessa situação por causa do álcool, drogas, desemprego e conflitos familiares.
Um grupo muito atingido por violências, abusos, conflitos familiares é o LGBTQIA+. E quando pensamos na questão de gênero, a imensa maioria que vive nas ruas é masculina. Na cidade de São Paulo, segundo censo da prefeitura e do IBGE, 80% das pessoas na rua da capital são homens cisgênero. Contudo, quando paramos para refletir sobre os perigos que as ruas trazem, conseguimos entender, talvez, porque mulheres evitam tal situação. Primeiro ponto é a violência sexual, já que mulheres estão sempre vulneráveis e a rua aumenta essa vulnerabilidade.
Outros tipos de violência também devem ser pensados, como, por exemplo, em busca de um ponto coberto, ou mais aquecido, uma mulher seria um alvo mais fácil para ser expulsa ou coisas nesse sentido. Por estarem mais suscetíveis a essas coisas que mulheres, por vezes, preferem ficar sofrendo violência em casa do que se arriscar na rua.
Ainda sobre São Paulo, 71% das pessoas em situação de rua se autodeclaram negras e pardas, esse percentual representa, proporcionalmente, o dobro do que pessoas brancas. Em estudos ligeiramente mais antigos o cenário não muda. A equipe da secretaria de Ação Social de Vitória constatou que 78% dos moradores de rua da cidade são negros. Já no Rio de Janeiro, a Secretaria de Assistência Social do município relatou que quase 80% em situação de rua são negros; em Salvador, segundo o Projeto Axé, a Universidade Federal da Bahia e outras instituições, 93% são negros e pardos, número superior ao que representa essa parcela da população em números gerais da cidade. Um relatório técnico do governo do Rio Grande do Sul sinaliza que 40% da população de rua é negra naquele estado. A saber: o índice de negros na população geral é de apenas 20%.
Não dá para não refletir sobre se os números acima colaboram para a negligência que essas pessoas sofrem. Até porque estamos falando do país que colocou nas manchetes em quase todos os meios de comunicação de massa o mendigo gato, que, não por coincidência, em nada tinha a ver com a grande parcela que compõe as pessoas em situação de rua, muito pelo contrário, era uma homem, loiro e de olhos azuis que rapidamente foi retirado da rua e alocado como subcelebridade. A sensação que me passa é a que seus pares não conseguiram o ver ali pois um dos seus naquela situação reflete sobre todos. Diferente de quando pensamos em pessoas negras que já são vistas por muitos como merecedoras desse lugar e não causam comoção alguma da maioria.
Centenas de pessoas morrem por conta do frio nessa época nas ruas de todo o Brasil e, para além das mortes, outras situações se agravam, como doenças, roupas quase sempre úmidas e pode até causar uma diminuição de trabalhos voluntários. Por essas e por outras que, hoje, além de toda essa mística positiva que há sobre o clima frio, uma parte de mim fica com o coração apertado ao pensar em pessoas que não têm acesso ao básico. E, nesse caso, a gente pode estender para pessoas que moram em palafitas, em barrancos e que correm o risco de serem vítimas de deslizamentos.
Esse texto não tem como intuito tornar imoral a conchinha com o afeto, nem o fondue, o chocolate quente, tão pouco o desejo de sair de bota e sobretudo. A intenção é que possamos refletir sobre outros grupos e, se puder, colaborar para que tenham um inverno mais ameno.