O filme inicia com uma linda homenagem a Chadwick Boseman, astro do primeiro longa que faleceu em 2020 após lutar contra um câncer por quatro anos. E não poderia ser diferente. Logo nesse início já é possível observar que "Pantera Negra: Wakanda Para Sempre" não se apega aos conceitos ocidentais. Isso porque, durante o funeral do T’Challa, é visto como a ideia da morte como a enxergamos é um conceito cristão, pois em Wakanda, que traz muitos elementos culturais das diversas etnias africanas, a passagem é feita com música, dança, celebração e todos de branco ao invés de preto.
É fácil observar que a todo momento o filme combate a lógica branca, europeia, masculina, colonial e cristã em que estamos inseridos. De todos os elementos hegemônicos, o que senti mais falta foi representatividade da comunidade lgbtqiapn+.
Wakanda e todas suas etnias que habitam sua região representam uma África sem a colonização, e não é diferente quando falamos do antagonista do filme. Eles são inspirados em povos ameríndios, como maias e astecas. Durante toda a apresentação dos personagens, vemos diversos elementos culturais e o ator que faz o personagem que sintetiza o antagonismo é mexicano, o que causou alguma reclamação daquela parcela nerd racista.
Seguindo falando do que incomoda nerd sexista e machista, e adentrando mais na proposta do texto, é estimulante ver o protagonismo feminino no filme. Um protagonismo que não se resume apenas a uma mulher que está em torno de vários homens, é um protagonismo real! Onde tudo no filme é pensado, feito e protagonizado por mulheres. Mulheres essas que não atendem uma expectativa misógina, mulheres que são plurais e não engessadas com uma personalidade única. Arrisco dizer que em todo universo Marvel foi a representação que mais gostei.
Esse protagonismo feminino espelha muito bem a importância das mulheres dentro da comunidade negra. Desde os primórdios do continente africano, havia civilizações matriarcais, ou seja, civilizações onde a figura da mulher liderava e/ou era a base que estruturava aquele povo. Lideranças essas que eram múltiplas. Havia etnias onde a mulher era o centro, pois eram elas as guerreiras, as rainhas e etc. Assim como havia etnias onde a mulher era o centro porque, para esse povo, o ser que gerava a vida deveria ser o centro. Importante falar isso, pois nossos conceitos de gênero são baseados em uma lógica branca e europeia, lógica essa que não acolhe outras culturas.
Costumo falar que sem a mulher negra o genocídio negro durante toda escravização seria ainda pior. Foram elas que salvaram diversos escravizados, seja com cuidados medicinais ou alimentando-os com leite materno para aliviar a fome durante os castigos sofridos. Foram também mulheres pretas as primeiras a se tornarem escravas de ganho, que eram pessoas escravizadas que podiam fazer pequenos trabalhos na cidades, ganhar dinheiro, mas tinham que dar a maior parte para seus senhores e ficar com uma pequena parte, e com isso essas libertaram muitas pessoas escravizadas. A minha tataravó era uma escrava de ganho e isso mudou totalmente o destino educacional da minha família como um todo, mas isso é história para um outro texto.
Até hoje as mulheres negras são exponenciais dentro do movimento negro de todo o mundo. No brasil temos Carolina Maria de Jesus que trazia nos seus poemas suas experiências enquanto mulher preta e periférica, Lélia Gonzalez que foi uma intelectual ímpar e pavimentou a estrada para que outras mulheres como a Sueli Carneiro e, mais recentemente, Djamila Ribeiro pudessem fazer o ótimo trabalho que vemos até hoje.
Para além dessas referências, nas questões intelectuais do movimento negro, são mulheres que sustentam a população negra, ainda que essas sejam a base da pirâmide econômica. Segundo dados do IBGE, 63% das casas chefiadas por mulheres estão abaixo da linha da pobreza, e esses números são de antes da pandemia, tá?
Esse texto não tem como intenção romantizar a vida de mulheres negras, dando a entender que elas vivem no mar de rosas e que todos os seus feitos são reconhecidos e aplaudidos. Muito pelo contrário, é por saber que mulheres pretas, sobretudo periféricas, são tão invisibilizadas por muitos, inclusive nós homens pretos, que acho de extrema importância que filmes, principalmente voltados ao público preto, tornem cada vez mais mulheres negras centro de suas obras. Entender a importância da mulher negra para a sociedade é fundamental para revertemos o quadro social racista e misógino que dificulta a vida dessa parcela da população.