Pessoas pretas têm direito de errar e de serem perdoadas, assim como as brancas são

O enfermeiro Cezar se sentiu ofendido com fala de Fred, que é médico. Enxergar Nicácio para além da sua cor é importante no antirracismo

19 jan 2023 - 11h12
(atualizado às 12h41)
Fred Nicásio é médico e fez declaração polêmica envolvendo a profissão do participante Cezar, que é enfermeiro
Fred Nicásio é médico e fez declaração polêmica envolvendo a profissão do participante Cezar, que é enfermeiro
Foto: Globo/Paulo Belote

Antes do BBB ter muitas pessoas negras, era mais fácil para a gente que fala sobre questões raciais, já que era raro ter assunto envolvendo pessoas negras com frequência. No BBB20,  por exemplo, quando Babu e Thelminha divergiam era super complicado para alguns por não saber como lidar com aquela situação. Quem apoiar? Como se portar? O que falar sem magoar outra pessoa negra? Já no BBB21, tivemos muitas pessoas negras e muitos atritos entre elas e muitos de nós ainda tinham muita dificuldade em falar sobre as divergências entre pessoas negras. Isso é até normal porque para a gente que é preto, gera conteúdo sobre raça e curte reality era uma novidade ter tanto preto em um BBB. Na edição 22 eu não tenho muitas lembranças, mas no deste ano já temos algumas questões importantes para serem pensadas.

Para quem não está por dentro do assunto, o médico Fred Nicácio falou que quando era fisioterapeuta viu um médico entubando um paciente e falou que queria fazer aquilo. Uma enfermeira branca, então, disse a ele “sai daí menino, isso aí é só para médico". Ele concluiu falando que sete anos após esse acontecimento ele voltou nesse hospital e ela “foi minha enfermeira”. Isso gerou uma grande repercussão entre os enfermeiros e também entre alguns fisioterapeutas. Conselhos de enfermagem criticaram a fala do médico dizendo que “quem tem enfermeira é o paciente” e que não existe hierarquia entre as profissões.

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Já dentro da casa, o participante Cezar, que é enfermeiro, se sentiu ofendido pela fala do Fred. Cezar falou que isso é uma questão grande na área da saúde. Trouxe vários exemplos, como quando nascemos o médico faz o parto, mas quem pesa, mede e cuida é a enfermagem e o mesmo vale no óbito e é a enfermeira que prepara o corpo. Como Cezar é um homem preto, assim como o Fred, que contou a história falando que a enfermeira foi racista na sua ótica, o tema repercutiu dentro da comunidade preta. Não só pelo fato de ambos serem negros, mas também por outras questões como pessoas negras serem maioria na área de saúde, mas serem minoria a medida que o salário vai aumentando dentro dessa mesma área.

O que penso sobre o tema é bem complexo e adianto logo que não trará nada taxativo ou definitivo. Na realidade, o que mais me chateou nesse assunto é ver a forma com que os desdobramentos acontecem quando existem pessoas pretas envolvidas.

Cezar é enfermeiro e ficou ofendido com fala de Fred Nicásio
Foto: TV Globo / Purepeople

Medicina é uma profissão super elitizada. Ter uma pessoa preta alcançando esse espaço é algo muito bom, inclusive vale lembrar que o próprio Fred Nicácio ficou famoso ao emocionar uma senhora idosa negra que nunca tinha sido atendida por um medico negro. Então, um médico preto em um horário nobre como o BBB, horário este que colaborou com muitos estigmas da população negra no Brasil, é super válido, sobretudo sendo ele é um homem gay e militante da causa racial. Ou seja, o Fred é um corpo que a sociedade racista e homofóbica não está preparada para vê-lo na posição em que ele se encontra. E vou além: tudo dentro dessa mesma sociedade é feito e pensado para que ele não alcance esse espaço de poder. Logo, eu entendo muito que a fala dele pode parecer soberba para muitos, mas, na minha visão, relatar sobre sua vida não deveria ser visto dessa forma.

Isso quer dizer que ele não errou? NÃO! Ele errou e concordo que haja cobrança, tá? Até porque cobrança é diferente de cancelamento. O que me incomoda são esses posicionamentos maniqueístas onde apenas um está totalmente certo e outro totalmente errado.

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Pessoas negras não são apenas pessoas negras. Elas têm vários atravessamentos de vida que faz com que elas se tornem um indivíduo complexo e de várias identidades. O que estou querendo dizer é que tem pessoas negras que são enfermeiras e vão ficar chateadas com Fred porque, na vivência dela, a fala dele atravessa pois ela cansa de passar com essa situação com outros médicos. Já para outra enfermeira, a fala do Fred é compreensível pois ela já cansou de ver e sofrer racismo da própria galera da área de saúde e se compadece com a forma do Fred falar ao relatar uma situação racista que ele passou. E vai ter também aquela que ficará em cima do muro pois, apesar de saber do equívoco da fala dele, tem ciência de que a fala da companheira de profissão foi embebida de preconceito e isso pode levar a ela não saber ao certo como se posicionar.

Pessoas pretas têm direito de errar, pedir desculpa e serem aceitas novamente como brancos. O Rodolfo do BBB21 foi racista com João e saiu com a música dele medíocre no topo de várias plataformas de música. Ou será que ser racista é uma falha compreensível? Pessoas brancas gozam de um privilégio do erro e da redenção que pouco se vê com pessoas negras, sobretudo em reality. Vide Karol Conka e Deolane.

Inclusive vou falar sobre a minha subjetividade nesse caso. Eu, ao ouvir a fala dele, não achei nada polêmica, muito pelo contrário, achei até uma história de volta por cima bem bacana. Quando fui conversar com pessoas negras da área de saúde, elas foram me dando outros pontos de vista, aí que eu fui entender o outro lado, mas nem por isso me fez ter a visão que algumas delas têm sobre o caso. Isso se dá porque, no meu caso, por não ser da área de saúde, o atravessamento racial é minha identidade que sobressai dentro desse assunto. Assim como eu tenho direito a minha individualidade, o Cezar e outras pessoas da enfermagem que ficaram chateadas têm todo o direito de ficarem chateadas. Tirar a possibilidade de pessoas negras serem plural é, de novo, remover a humanidade delas. O que é o ser humano se não um conjunto de identidades móveis que vão se organizando de forma distinta com o passar dos anos?

O erro do Fred teve uma fala classista e isso não define quem ele é. A forma como ele falou não foi correta e ele deve se desculpar. Agora tentar resumir o cara ao erro é equivocado. Médicos, por vezes, se acham deuses, mas a gente sabe que no dia a dia do hospital quem faz tudo andar são as técnicas de enfermagem. Tem médicos que, por vezes, só servem mesmo para assinar o que a técnica e a enfermeira já identificaram há séculos. Assim como é muito nítido para mim que ser médico não impede nenhum preto de sofrer racismo, inclusive da própria equipe. A sobrinha de minha tia, médica anestesista preta, sofreu racismo de uma pessoa branca da área dentro do centro cirúrgico. A moça foi se queixar sobre a anestesista que ainda não havia chegado. Claro que suas experiências não são desculpas para futuros erros, mas todos somos passíveis de errar e é importante que tenhamos a humildade de admiti-los e repensar nossos posicionamentos.

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Por fim, eu gostaria muito de entender três coisas: Como tem tanto alecrim dourado nessa internet? Me pergunto também quanto tempo a maioria de nós demoraria para ser cancelado se tivesse uma câmera 24 horas nos seguindo? E se o Fred fosse branco as pessoas estariam tão alvoroçadas e debruçadas sobre essa fala?

A sociedade precisa racionalizar sua compaixão e empatia.

Fonte: Redação Nós
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