Duas notícias vindas do Peru chamaram atenção recentemente. A primeira delas sobre a psicóloga Ana Estrada, que morreu por eutanásia e se converteu no primeiro caso do país a assegurar na Justiça esse direito. Há décadas sofrendo dos efeitos de uma doença degenerativa chamada polimiosite, Ana, teve seu desejo atendido aos 47 anos. Ela queria poder viver a última etapa de sua existência sem dor e sem a angústia de imaginar como a doença ainda a maltrataria antes de seu coração parar de bater.
María Teresa Benito Orihuela, de 66 anos, também recorreu à Justiça peruana e ganhou o direito de interromper qualquer procedimento que a mantenha viva artificialmente. Portadora de esclerose lateral amiotrófica, ELA, Maria Teresa só está viva porque há anos seu corpo está conectado a um ventilador mecânico. Mas para a surpresa da paciente, doze médicos do hospital em que está internada se recusaram a cumprir a decisão judicial alegando motivos religiosos.
Não sei o que é mais cruel. Uma vida definhando num leito hospitalar por causa de uma doença sabidamente incurável e que impede o paciente de coisas simples como engolir a própria saliva e se alimentar naturalmente (no caso de Maria Teresa até de respirar), ou o grupo de médicos que usa a religião para sequestrar o desejo legítimo de um fim de vida mais digno.
Questões ligadas ao conceito de uma morte digna têm que ser tratadas sem rodeios, com a seriedade que o assunto merece. Não dá para tapar o sol peneira para o fato de que estamos vivendo mais. Mas com que qualidade? Doenças degenerativas como ELA, Parkinson ou Alzheimer ou doenças crônicas como câncer serão cada vez mais prevalentes na população que envelhece pelo simples fato de que um dos principais fatores de risco é a idade.
Venho de uma família particularmente longeva. Minha avó materna morreu aos 101 anos após uma fratura de fêmur. Minha mãe achava que minha avó morreria em casa, dormindo, como se tivesse, numa fração de segundos, sido desligada. Seria uma forma de honrar uma existência plena, a coroação de uma vida que valeu a pena ser vivida.
Mas não foi o que aconteceu. A realidade mostra que só uma minoria dá o último suspiro de vida enquanto dorme. Minha avó morreu numa cama de hospital assim como minha mãe e meu pai. Ambos, com doenças degenerativas, passaram os últimos dias sob cuidados paliativos porque já não havia mais nada a ser feito.
Foi uma decisão dos filhos e posso dizer, por experiência própria, que ver meus pais partirem aparentemente sem dor fez da morte algo bem mais tranquilo. Ainda assim, sinto que eles sofreram mais do que seria o desejo deles porque a abordagem da medicina atual é esticar a vida dentro dos hospitais o máximo possível. Muito provavelmente porque o olhar dos médicos, por formação, seja direcionado para tratar a doença e não a quem está doente.
O tema da morte, que vai chegar cedo ou tarde para todo mundo, precisa deixar de ser tabu para que a gente possa garantir uma passagem serena, sem dor, num ambiente em que a família possa estar por perto. Traduzindo em miúdos, sem debate, estamos adiando a possibilidade de vir a ter uma morte boa para uma infinidade de pessoas.
Quando penso nesse assunto da boa morte, me vêm à lembrança as palavras do psicanalista e escritor Contardo Calligaris ditas um pouco antes de morrer por causa de um câncer em 2021. "Espero estar à altura", disse ao filho. A frase parece resumir que a morte, assim como a vida, vale a pena ser vivida da maneira mais digna possível.