“Ainda Estou Aqui" entrou em cartaz no dia em que a Eunice Paiva, interpretada no filme por Fernanda Torres, faria 95 anos. Eunice é mãe do escritor Marcelo Rubens Paiva, autor do livro de mesmo nome que virou filme pelas mãos do diretor Walter Salles. O sucesso do longa, que já levou quase nove milhões de pessoas às salas de cinema, pode ser vista como uma homenagem póstuma à mulher que resistiu com coragem e persistência a tempos sombrios.
Walter Salles escolheu a história da família Paiva para fazer um recorte no tempo em que o país vivia o auge da repressão do regime militar, depois da promulgação do AI- 5. No filme, enquanto militares estão ostensivamente pelas ruas do Rio de Janeiro, somos convidados a entrar na casa onde viviam o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), cassado pela ditadura, a mulher Eunice e os cinco filhos do casal.
A atmosfera solar da casa da Avenida Delfim Moreira, no Leblon, contrasta com o clima barra pesada fora dela. É um entre e sai de filhos, indo e voltando da praia, e que vivem com um pai brincalhão e afetuoso, e Eunice, a mãe que faz a roda girar. O cotidiano do casal inclui receber amigos. Entre suflês e goles de whisky, todos conversam sobre os rumos do país. São imagens de uma casa que, em sua aparente normalidade, representa a tentativa de resistir à violência institucionalizada do Brasil dos anos 70.
Até que um dia, a família é surpreendida pela visita de agentes da repressão. Seis homens da aeronáutica à paisana chegam armados, para levar Rubens Paiva para depoimento. A partir daí, a casa se converte num cárcere privado da família. O ex-deputado se veste com terno e gravata, deixa a casa dirigindo o próprio carro e nunca mais é visto.
Sem saber o que aconteceu ao marido, Eunice precisa ser um alicerce para os filhos ao mesmo tempo em que busca a verdade. A maneira como Fernanda Torres conduz a personagem é comovente. Mas iria além: a atriz também personifica as muitas Eunices, mães e esposas que persistem na busca de respostas para provar que filhas, filhos, companheiros e companheiras foram mortos por um Estado que, em vez de proteger, assassina seus cidadãos.
Vi “Ainda Estou Aqui” numa sessão à tarde, num cinema de shopping, logo que estreou. O público foi reverente durante toda a sessão. O silêncio da sala só foi quebrado ao final, com aplausos, enquanto fotos da família Paiva da vida real eram mostradas. Estava enxugando as lágrimas nessa hora para disfarçar a cara de choro. Soube depois que, o que aconteceu nesta sessão, se repetiu em outras salas de cinema do país.
Mesmo sem a familiaridade trazida pelo filme de Salles, houve um impacto semelhante ao final de “Argentina, 1985” (Prime Video, 2022) , filme que mostra a história verídica dos promotores que processaram a ditadura militar daquele país. No país vizinho, os homens que torturaram e mataram, foram condenados.
No Brasil, tivemos a Comissão Nacional da Verdade, que investigou os crimes da ditadura e sugeriu a revisão da Lei de Anistia. Mas nada aconteceu.
O paralelo com o presente é inevitável, num momento em que democracias do mundo todo são ameaçadas por dentro, com a ajuda dos eleitores. Não somente nos Estados Unidos, onde a maioria reconduziu um presidente com falas extremamente autoritárias e sinalizou um retrocesso para o mundo, mas até em países que viveram os horrores da ditadura como Argentina e Brasil.
Tenho esperança de que o ex-deputado Ulysses Guimarães pudesse estar certo estava certo quando, ao promulgar a Constituição de 1988, fez um discurso histórico em defesa do Estado democrático. “A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram", disse sob aplausos. Meu desejo é que a sociedade formada por Eunices, que ela sempre vença.