Na porta da geladeira, tenho a foto de uma menina, aparentando ter menos de 10 anos, com vestido florido, capacete na cabeça e um skate nas mãos. A foto faz parte do livro e da exposição que a fotógrafa inglesa Jessica Fulford Dobson fez, em 2015, na Saatchi Gallery de Londres, chamada "Skate Girls of Kabul" (ou as meninas skatistas de Cabul).
É uma imagem que provoca reação semelhante àquela de ver Rayssa Leal, ainda pequena, em cima do skate com uma fantasia de fada, personificando a junção de universos que, a princípio, são opostos. Mas para mim, a foto revela um sentimento de alegria e liberdade latente pelo simples fato de uma menina poder andar de skate.
Em 2021, quando o governo dos Estados Unidos retirou bruscamente as tropas do Afeganistão e com a volta dos talibãs ao poder, foi na menina skatista da foto que pensei. Senti uma dor em imaginar como a vida dela havia sido interrompida a partir dali, com restrições para estudar, sair de casa e praticar esporte.
Três anos depois, nos Jogos de Paris 2024, as mulheres atletas enviaram uma mensagem poderosa ao mundo. No esporte -e na vida- podem tudo e do jeito delas.
Mostraram como a força, coragem e um espírito incansável as trouxeram ao centro do maior evento esportivo do mundo. Pela primeira vez, participando em número igual aos homens, protagonizaram os momentos mais inesquecíveis desta edição dos jogos.
Entre eles, estão as cenas de duas atletas afegãs que, em gestos silenciosos, lembraram da situação de crueldade pela qual passam as mulheres de seu país. Uma delas foi Kimia Yosofi que, ao final da prova classificatória dos 100 m, tirou o número de identificação das costas e exibiu o verso dele, onde se lia "educação", "esporte" e "nossos direitos".
Kimia precisou fugir de seu país para praticar o esporte. Correu pelas mulheres afegãs que tiveram seus sonhos e desejos por justiça e liberdade roubados pelo regime dos radicais islâmicos. Correu também pelas meninas skatistas de Cabul.
O mesmo fez Manizha Talash, do breaking, que fugiu da capital do Afeganistão e, nestes jogos, integrou a equipe olímpica de refugiados. Durante sua apresentação na Praça da Concórdia, centro de Paris, a b-girl usou uma capa que trazia a frase "liberdade para as mulheres afegãs". Foi punida com a desclassificação pelo seu gesto.
Por mais que o COI (Comitê Olímpico Internacional) tente impedir manifestações consideradas "políticas", não dá para punir os atletas que usam de sua visibilidade em favor de causas humanitárias tão urgentes. Não há como tolerar racismo, homofobia assim como desrespeito aos direitos mais básicos das mulheres. Os dirigentes do esporte não podem ser cúmplices da opressão e violência a que são submetidas mulheres pelo mundo afora.
Para elas, há sempre um caminho mais difícil a ser percorrido. Com o esporte, um recorte poderoso da nossa sociedade, não é diferente. Ele contribui para expor algumas das batalhas diárias que exigem das mulheres uma coragem quase sobrehumana.
Assistimos isso na luta da atleta Imane Khelif fora dos ringues para se proteger de uma onda de críticas, depois que uma adversária italiana abandonou o confronto com ela, questionando o gênero da argelina. Mesmo sendo ferida em sua dignidade, Imane se manteve firme.
De quebra, mandou um recado aos propagadores do ódio e preconceito ganhando uma reluzente medalha de ouro, em companhia da qual desfilou sorridente na festa de encerramento dos jogos.
Vimos fartas doses de coragem também na atleta de wrestling Vinesh Phogat.
Ao lado de outras lutadoras indianas, Phogat liderou um longo protesto, no ano passado, exigindo a renúncia do então presidente da federação indiana de Wrestling acusado de assédio e abuso sexual. Phogat, assim como todas as lutadoras indianas que estiveram em Paris, vem de uma região conservadora e patriarcal onde as mulheres sequer podem usar calça jeans ou ter um celular. Mas no wrestling, encont ram um espaço onde podem ser livres. Agora exigem estar seguras e protegidas de técnicos e dirigentes abusadores.
No caso das atletas brasileiras que brilharam nas Olimpíadas de Paris vimos o quanto o esporte pode ser transformador. Mesmo com discrepâncias entre homens e mulheres de salário, de ofertas de patrocínio, mesmo lutando contra o preconceito e o machismo, foram elas que provocaram nossas lágrimas ao longo desses últimos dias.
Foram para os palcos das disputas esportivas machucadas, com dores no corpo, caíram, se levantaram, viraram o jogo. Vestiram kimonos, collants reluzentes nas arenas e shorts nas areias, algo que seria proibido anos atrás. Foram guerreiras usando as cores de um país. Representaram o Brasil de forma heroica. Que as batalhas travadas por todas elas possam facilitar o caminho das futuras gerações de mulheres brasileiras. Esse é um legado que vai muito além da conquista de uma medalha.