Assim que o torneio de Roland Garros começou, o jornal francês L'Equipe, especializado em esportes, estampou na capa a manchete "Uma Terra sem seu Rei". A foto que acompanhava o título era a do tenista Rafael Nadal deitado no lendário solo: a quadra de saibro francesa onde ele se sagrou campeão 14 vezes. Nesta edição, o espanhol está fora da disputa para tratar de uma lesão no quadril. Com isso, no início do torneio aumentavam as possibilidades de que algum outro nome menos dominante no saibro pudesse ser campeão. Quem sabe até um azarão.
Não seria uma novidade. Em 1997, o brasileiro Gustavo Kuerten, o Guga, chegou a Paris como 66º colocado no ranking mundial e deu início à série de vitórias que o levou a conquistar o título de Roland Garros. Antes de Guga, nenhum outro tenista tinha sido campeão vindo de um ranking tão baixo.
Quando o tenista brasileiro Thiago Wild, número 172 no ranking, venceu de virada o russo Daniil Medvedev, o segundo melhor do mundo, muita gente se perguntou: afinal, quem é esse jogador? Um novo Guga despontando no circuito? Alguém que poderia reviver as emoções trazidas pelas conquistas do tenista catarinense que chegou a número 1 do mundo? Não demorou para constatar que as trajetórias pessoais eram diferentes.
Quem fez uma rápida consulta ao Google para saber mais sobre o tenista viu que, desde 2021, há um processo contra Thiago Wild por violência doméstica e psicológica. Na época da denúncia, Thiago inclusive perdeu o contrato com a marca de artigos esportivos que o patrocinava. Mas a história do processo, que ainda não foi julgado, ficou um pouco esquecida no último ano.
Ela voltou à tona assim que o jogo contra Medvedev terminou. Primeiro, porque chamou a atenção a maneira arrogante e agressiva com que o tenista respondeu a um jornalista alemão sobre o assunto. Na entrevista coletiva, parada obrigatória dos atletas que estão no circuito da ATP, Thiago disse que não cabia ao jornalista fazer aquela pergunta, como se o entrevistado pudesse dizer ao repórter o que ele pode ou não perguntar. Ainda houve, segundo o jornalista alemão, uma tentativa de intimidação por parte do agente do atleta que fotografou a credencial com o nome do repórter.
Depois, veio o relato devastador ao jornal O Globo da ex- mulher dele, a influencer e biomédica Thayane Lima. O jornal também reconstruiu as ligações dos antepassados do tenista com o nazismo, mas isso ainda é outra história. É um dado biográfico, um pouco chocante, mas não se pode afirmar que tenha influenciado na criação dele. O que dá para afirmar através dos prints de whatsapp publicados pelo jornal é que Thiago não economizava humilhações e xingamento s quando se dirigia à ex-mulher. "Anta", "retardada", "idiota", "puta", "fraca", eram termos que apareciam nas mensagens.
No último sábado, enquanto o tenista tentava sobreviver no torneio jogando contra o japonês Yoshihito Nishioka, parte da torcida entoava o nome de Thiago. Como de costume, a transmissão e os comentários dos analistas falavam sobre o desempenho do brasileiro em quadra. "Faltou perna no último set", "tem muito tênis para mostrar", avaliavam os especialistas. Mas, sinceramente, nem por um instante consegui separar 'o atleta da pessoa', esse argumento que sempre aparece em casos assim. "Anta", "retardada", "puta","ïdiota", "fraca", "lixo". Como achar isso aceitável?
As denúncias reproduzem o que acontece tradicionalmente em casos de abusos psicológicos. Pela Lei Maria da Penha, de 2006, violência psicológica pode ser definida como qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da auto-estima. Ela envolve manipulação, insultos, ridicularização, ameaças, tentativas de limitar o direito de ir e vir, causando prejuízos à saúde psicológica e à autodeterminação. Nunca é algo pontual. A violência psicológica se caracteriza como uma agressão constante.
Vale lembrar que o caso do brasileiro não é a primeira denúncia de violência doméstica envolvendo tenistas do circuito da ATP. O alemão Alexander Zverev e o australiano Nick Kyrgios enfrentaram acusações semelhantes. Sobre Zverev, a ATP abriu investigação mas alegou não ter encontrado provas contra o alemão. Por sua vez, Kyrgios assumiu que cometeu a agressão. Empurrou a namorada enquanto discutiam, mas alegou que sua saúde mental andava abalada nessa época. Foi absolvido pela justiça australiana.
Atletas de alto nível podem não ter vida fácil quando a gente pensa na quantidade de dores e lesões que enfrentam e na tremenda pressão psicológica a que se submetem na busca por resultados. Mas nem por isso são seres superiores ou estão acima da lei. Que o digam Daniel Alves e Robinho.
Atletas precisam personificar alguns ensinamentos que o esporte traz para ganharem respeito de quem torce por eles. Precisam dar exemplos de que são seres morais e dotados de alguma ética. Existe até uma expressão em inglês que é "sportsmanship" para definir a boa conduta de um atleta. Isso envolve reconhecer o oponente e ser elegante sempre, em caso de derrota ou vitória.
No entanto, aqueles que se tornam heróis nos oferecem muito mais que isso. Eles despertam dentro da gente o torcedor mais apaixonado, capaz de sentir as emoções mais intensas, porque além do atleta genial, há alguém que admiramos por trás. Uma coisa nunca vem desligada da outra. Um atleta nunca vem separado da pessoa.