O mundo invertido de Kim Kardashian

Que mensagens a estrela do clã Kardashian passa em suas escolhas de moda? Podem não ser as melhores

29 set 2022 - 05h00
 Parece que voltamos muitas casas no tempo, quando mulheres eram torturadas por espartilhos que lhes tiravam o ar e causavam desmaios.
Parece que voltamos muitas casas no tempo, quando mulheres eram torturadas por espartilhos que lhes tiravam o ar e causavam desmaios.
Foto: Reuters

Em meio às semanas de moda que acontecem na Europa, Kim Kardashian postou em suas redes um vídeo que era para ser uma cena divertida de bastidor. A empresária e estrela do reality "The Kardashians" (Star +) é flagrada passando aperto ao tentar caminhar com um vestido extremamente justo, por ocasião do lançamento da coleção Primavera Verão 2023 da dupla de estilistas Dolce & Gabbana e que teve a colaboração de Kim.

No vídeo, Kim não consegue sequer dar um passo naturalmente. Ela ainda tenta subir uma escada, dando pulinhos com os pés juntos, como naquelas brincadeiras em que os competidores correm com as pernas enfiadas num saco. Para acrescentar uma pitada de humor, a trilha do vídeo imprime um clima de comédia pastelão. 

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O sentimento que o vídeo despertou em mim, foi o oposto de algo divertido. Achei perturbador assistir, em pleno século 21, uma mulher perder os movimentos por causa de uma roupa que se assemelha a uma armadura. Parece que voltamos muitas casas no tempo, quando mulheres eram torturadas por espartilhos que lhes tiravam o ar e causavam desmaios. Tudo em nome de um ideal de corpo que priorizava uma cintura minúscula e que perdurou por séculos, dos anos 1500 até o final de 1800. 

Tinham também as crinolinas, as armações usadas por baixo das roupas para dar volume às saias e que pareciam gaiolas presas ao corpo feminino. Quanto mais volumosas eram as crinolinas, maior o status de uma mulher. Ninguém poderia se aproximar dela por causa da barreira física. 

Diz a história que as crinolinas foram responsáveis por inúmeras mortes de mulheres, porque eram feitas de material altamente inflamável. Com todo aquele volume, as saias esbarravam no que encontravam pelo caminho. Às vezes, em velas ou na brasa de lareiras. Ao pegar fogo, as mulheres mal tinham tempo de se livrar de toda a indumentária. Morriam queimadas. 

Além disso, havia a crueldade de não permitir que elas se sentassem direito, exatamente como aconteceu com Kim. Mesmo sem crinolina, ela teve que entrar no carro e seguir viagem quase deitada por causa do vestido que lhe tirou os movimentos. 

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E não é que, dias depois, no desfile da Dior em Paris, a estilista Maria Grazia Chiuri, colocou na passarela algumas modelos vestidas com crinolinas? Na hora, despertou um alarme interno sobre os rumos da moda atual.

Com uma coleção inspirada em Catarina de Médici, a nobre italiana que se tornou Rainha da França em 1547, a estilista homenageou uma das primeiras mulheres a usar a moda como ferramenta de poder. 

Além da lingerie feminina, a rainha introduziu os saltos plataforma. Com eles, Catarina ficava mais alta e ganhava importância. São as mesmas plataforma, agora altíssimas, que estão nos pés das celebridades, incompatíveis com a rotina da maioria das mulheres que usa transporte público e caminha pelas calçadas de uma cidade.  

Até o século 19, nos países ocidentais, as roupas de uma mulher não eram apropriadas para os espaços públicos, porque o lugar reservado a elas era a casa. Foi o desejo por mais liberdade que levou algumas mulheres revolucionárias a se apropriarem de roupas masculinas. Eram o passaporte para experimentar uma vida livre de controle, em que se podia andar de um canto a outro sem serem importunadas, tal qual um homem. 

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Não demorou muito para surgir uma lei proibindo as mulheres de usar calças compridas em público. Foi o que aconteceu na França onde, por incrível que pareça, essa lei ainda está em vigor, embora seja ignorada solenemente. Esse fato é descrito pela escritora estadunidense Lauren Elkin, no livro Flâneuse (Editora Fósforo), obra que celebra os prazeres de uma mulher poder flanar livremente. Ou melhor, apenas caminhar pela cidade sem ser controlada. Por coincidência, o livro de Elkin se tornou minha leitura no momento em que protestos liderados por mulheres iranianas têm chacoalhado o país desde a morte da Masha Amini, de 22 anos. A jovem iraniana morreu depois de ser parada pela polícia da moralidade, nas ruas de Teerã, porque seu véu (hijab) não estaria sendo usado de aco rdo com o que determina a lei. 

É revoltante pensar o quanto, ainda hoje, os corpos femininos são objeto de controle pelo mundo afora seja pelo estado, pela sociedade patriarcal ou por estruturas poderosas que demandam ainda mais da nossa coragem para mudá-las. 

Talvez, por isso, seja tão chocante ver um corpo aprisionado por um capricho da moda, assim como no passado. Ao ver a cena protagonizada por Kim Kardashian, ecoaram na minha cabeça as palavras de Lauren Elkin: "me deixem andar, me deixem seguir meu ritmo, me deixem sentir a vida passar por dentro e a minha volta".  

Fonte: Redação Nós
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