Desde que o caso da Sra. Pelicot se tornou notícia, a francesa foi pro tudo ou nada, se colocando como alguém que não tem mais nada a perder.
No final da semana passada, fotos e vídeos em que Gisèle Pélicot aparece sedada enquanto era estuprada por vários homens, começaram a ser exibidos na presença da imprensa e do público. A princípio, a exibição ficaria restrita aos acusados, dado o caráter "indecente e chocante" do conteúdo, como definiu o juiz que conduz o caso. Mas foi a própria vítima, através de seus advogados, que insistiu para que as imagens fossem vistas publicamente nas salas do tribunal.
Desde que a história dos estupros em série, organizados pelo marido da vítima, se tornou notícia no mundo todo, a Sra Pelicot se colocou corajosamente numa posição de quem não tem mais nada a perder. Ela quis enfrentar seus abusadores olhando no olho de cada um deles na sala do tribunal. Optou por revelar publicamente os horrores pelos quais passou, sem estar a portas fechadas com seus agressores. Mesmo se sentindo "morta por dentro", como afirmou à imprensa, decidiu exibir suas dores diante da opinião pública para evitar que outras mulheres fossem vítimas de violência semelhante.
Defender que os vídeos se tornassem públicos era mais um capítulo quase esperado dentro dessa história. Assim que foi dada a autorização, o jornal "Libération" resumiu: "pela primeira vez desde o início do julgamento, o público vai entrar no quarto de Gisèle e Dominique Pelicot".
Quais os riscos que isso poderia trazer? Um sensacionalismo desnecessário para o caso? Uma curiosidade voyeurística? Uma desumanização da vítima, uma vez que Gisèle aparece como um corpo inerte sobre uma cama, sendo abusada por homens que por nenhum instante cogitaram se estariam lá sem o consentimento da vítima?
Na última sexta-feira, alguns vídeos que estavam no computador de Dominique Pelicot foram mostrados às pessoas presentes no tribunal. Segundo o juiz do caso, só "os estritamente necessários" para o esclarecimento da verdade. Para a repórter do "New York Times" que acompanhava o julgamento, o material foi mostrado num tempo "desconfortavelmente longo", fazendo com que várias pessoas desviassem o olhar ou abaixassem a cabeça durante a exibição do material.
A brutalidade do conteúdo também reforçou o que é sabido. Os estupradores não são figuras que vivem à margem da sociedade. Estão por aí, como homens quaisquer, sem estarem associados à imagem de 'monstros'. São pais, avôs, trabalhadores. No caso francês, são motoristas de caminhão, técnicos de TI, enfermeiros, carpinteiros, jornalistas, que se escondem por trás de suas vidas aparentemente normais e pacatas.
No entanto, esses mesmos acusados não conseguem se esconder quando aparecem na tela da sala de um tribunal, diante de dezenas de pessoas. Nenhuma gravação é capaz de atenuar a crueldade do que ocorreu dentro do quarto dos Pelicot.
Fica difícil comprar a versão dos acusados, de que não participaram do estupro quando as imagens dizem o contrário. Da mesma forma, quando alegam que pensavam se tratar de um casal libertino. Qual seria a participação da mulher nesse "jogo" se ela estava inconsciente durante todo o tempo? A exibição desse material, agora visto publicamente, amplifica os horrores de como a violência sexual é normalizada entre homens.
Mas há também um outro lado que veio com a decisão da justiça francesa. Normalmente, quando mulheres denunciam seus agressores de violência sexual, são elas as primeiras vítimas do constrangimento público. Quando rompem o silêncio, são obrigadas a reviver traumas, muitas vezes sem nenhum acolhimento por parte dos magistrados. Com o precedente aberto no Tribunal de Avignon, a Sra Pelicot consegue fazer com que a realidade se inverta. Como ela mesma disse, agora "a vergonha deve mudar de lado".