Basta aparecer uma mulher denunciando o parceiro famoso para o tribunal da internet partir para o ataque. "Você está fazendo isso por dinheiro", "quer aparecer às custas do sucesso dele", são frases comuns deixadas nas redes sociais para taxar mulheres como aproveitadoras, interesseiras e mentirosas, especialmente quando do outro lado tem alguém com destaque na mídia e endinheirado.
Gabriela Cavallin, que foi companheira de Antony, atleta que joga na Inglaterra pelo Manchester United, não escapou à regra. Ela acusa o ex-companheiro, entre outras coisas, de socá-la tão forte no peito que chegou a deslocar o implante mamário, além de enviar mensagens que soam como ameaças de morte.
A divulgação de prints de mensagens, fotos e áudios que constam do processo que Gabriela move no Brasil contra o atacante de futebol, veio nesta semana. No entanto, as denúncias de violência doméstica contra Antony começaram meses antes disso. Mesmo assim, a vida do jogador seguiu normalmente. Não houve uma única declaração do United a respeito da acusação. Nada. Antony esteve em campo nas partidas que o Manchester United disputou pela Premier League, a liga do futebol inglês. De quebra, chegou a ser convocado (depois desconvocado) para seleção brasileira, num sinal claro de que os homens a frente do futebol não aprenderam nada com os casos anteriores envolvendo atletas acusados de violência contra suas parceiras.
Enquanto isso, Gabriela era achincalhada nas redes. Como achar que uma mulher ao tomar a decisão de denunciar seu agressor quer mesmo é se "dar bem"? Que tipo de vantagem ela teria ao falar sobre um assunto tão dolorido quanto o abuso doméstico físico e verbal e, ainda por cima, ser julgada por seu comportamento?
Assumir-se uma vítima de violência doméstica é uma barra tão pesada que a maioria das mulheres que passam por isso sequer chegam a denunciar seus agressores. Há sempre o receio do julgamento do que os outros vão pensar por ela ter permanecido ao lado do agressor, mesmo com os abusos acontecendo cotidianamente. É um misto de dor e vergonha muito grande para as vítimas ter que relatar a quantidade de abusos pelos quais foram submetidas. São xingamentos e humilhações diárias, proibições de ir a determinados lugares ou de se relacionar com determinadas pessoas, além de uma tensão constante no ar. São mulheres que vivem num estado de alerta permanente, atentas para não fazer nada que possa despertar um ataque de fúria do companheiro, temendo que isso possa terminar em morte.
Gabriela pediu uma medida protetiva contra o ex-companheiro por medo do que pudesse acontecer a ela. Contou que o jogador dizia que ou ela ficava com ele ou "morria todo mundo". Expressar o desejo de matar a companheira não pode ser encarado como algo aceitável num relacionamento entre duas pessoas. Pelo contrário, é um sinal perturbador, um alerta para ser levado a sério.
Assisti recentemente ao documentário Johnny x Amber (HBO Max), sobre o julgamento que consumiu a atenção mundial envolvendo o ex-casal de atores Amber Heard e Johnny Depp. Dividido em duas partes - cada uma delas conta a versão de um dos atores - o documentário expõe mensagens do astro de "Piratas do Caribe" em que se refere a sua companheira na época. Em uma delas, Depp escreve ao também ator e colega Paul Bettany o seguinte:
"Vamos queimar Amber!!! Vamos afogá-la antes de queimar!!! Vou transar com o cadáver queimado dela para garantir que morreu".
São palavras extremamente violentas, compatíveis com uma personalidade agressiva. Existem outros episódios revelados na corte que atestam isso. Mas o que prevaleceu durante as seis semanas de julgamento foi a repercussão junto à opinião pública que se fartou de material sobre o caso, uma vez que o julgamento foi transmitido pela internet a pedido da defesa de Depp. As redes sociais foram inundadas por trechos do que acontecia no tribunal, geralmente em versões bem desfavoráveis à atriz e ex-esposa do ator. Amber foi acusada de atuar em seu depoimento, além dos termos de sempre. Interesseira, aproveitadora, mentirosa.
Foi condenada a pagar US$ 10 milhões ao ex-companheiro por tê-lo difamado num artigo do jornal Washington Post no qual, sem citar o nome de Depp, ela dizia ser uma sobrevivente de violência doméstica. Depois da sentença, Amber afirmou ter perdido a fé na justiça de seu país. Ela se sentiu desamparada e usada apenas como entretenimento para o público.
A Organização Mundial de Saúde estima que a violência contra mulheres atinja um terço da população feminina em todo o mundo. A entidade considera um problema de saúde pública uma vez que as vítimas têm que lidar com as consequências físicas, sociais e emocionais, psíquicas pelo resto da vida. Como sabemos, é um problema que não distingue classe social, nível de escolaridade, local de nascimento, nada. Basta ser mulher para estar nas estatísticas.