Um homem branco cercado por outros homens brancos, todos engravatados, num grupo onde se vê apenas uma mulher, sobe ao plenário da Câmara e se dirige a uma plateia também formada por homens brancos e engravatados em sua maioria.
No intervalo da votação que discutia os vetos do presidente Lula relacionados à Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2024, às saidinhas, ao setor aéreo e às fake news, o deputado Zacharias Calil (União-GO) decidiu protagonizar um espetáculo dantesco no plenário do Câmara. Cenas que, infelizmente, têm se tornado mais comuns na chamada casa do povo.
Ao transformar o plenário em palco, o deputado simula o que seria uma assistolia fetal, um procedimento assegurado pelo Supremo Tribunal Federal e que interrompe a gravidez tardia em casos de estupro. O parlamentar quis chamar a atenção para o que qualificou de "feticídio". A posição do deputado é a mesma do Conselho Federal de Medicina, presidido por um homem branco e auxiliado por uma diretoria composta em sua grande maioria por outros homens brancos e que se opõem ao procedimento.
Ora, ora, esse é o mesmo Conselho Federal de Medicina que durante a pandemia de Covid se recusou a condenar a prescrição de medicamentos sabidamente ineficazes como cloroquina e hidroxicloroquina. Um Conselho mais interessado em expressar de que lado da política se alinhava mesmo que sua resolução fosse um atentado contra a ciência e em meio a uma pandemia que dizimou mais de 700 mil vidas somente no país.
A posição atual da entidade sobre o procedimento legal em casos de estupro, contando com o reforço de seus porta-vozes dentro do Congresso, em nada ajuda as verdadeiras vítimas de um crime bárbaro como o estupro. Pelo contrário, contribui para um clima de terror instalado entre a classe médica que se vê cada vez mais pressionada a não realizar procedimentos que estão previstos na lei às vítimas de estupro.
Quem está realmente na linha de frente dando atendimento e suporte às vítimas dessa violência sabe o quanto é importante assegurar a realização da assistolia fetal por uma razão fundamental: a maioria das vítimas de estupros que descobre tardiamente a gravidez são crianças que mal conhecem o seu próprio corpo. São meninas de 10 anos, que nem menstruam direito e que se sentem envergonhadas ou até acuadas de falar sobre a violência a que são submetidas, muitas vezes dentro da própria casa. Meninas pobres, negras que vivem nas periferias e zonas rurais, para quem o acesso aos serviços de saúde já é mais precário. A descoberta da gravidez muitas vezes se dá no momento em que a barriga começa a crescer. É muita crueldade querer negar um direito assegurado por lei a uma criança já traumatizada por uma violência sistemática.
Mas sobre as verdadeiras vítimas, os homens brancos e engravatados "defensores" da vida se calam. Para esses senhores, a vontade da vítima que não querer carregar o fruto de um estupro pelo resto da vida, não tem importância. Afinal, eles são os homens que dentro de seus gabinetes, descolados na realidade, se vêem no direito de decidir o que uma mulher pode ou não fazer. Eles são os senhores da razão. Na visão deles, autonomia só quem deve ter é o médico, mesmo que ele se coloque contra a lei e contra a ciência. É tudo muito vergonhoso, revoltante e hipócrita, para dizer o mínimo.