Da beleza ao físico, tabu impede presença de mulheres na F1

Pioneira na principal categoria do automobilismo ouviu que não deveria “usar nenhum capacete que não fosse um secador de cabelo"

22 jul 2022 - 05h00

“Mulher no volante, perigo constante”. Quem nunca ouviu (ou até mesmo falou) esta frase machista? O preconceito com mulheres na direção atinge não apenas a sociedade de modo geral, mas se estende aos esportes de motor. São pouquíssimas as que tiveram alguma oportunidade, em quaisquer categorias. 

Por todo esse contexto, o nome de Maria Teresa de Filippis é tão importante para a história. Ela foi a primeira mulher a pilotar um carro de Fórmula 1, aos 22 anos. Em 1948, quando ouviu seus irmãos mais velhos dizerem que ela não era capaz de ser rápida em um carro, Maria pilotou seu Fiat 500 na competição de 10 km no percurso de Salerno-Cava de Tirreni e, contrariando e surpreendendo a todos, venceu a corrida.

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Maria Teresa de Filippis em seu Fiat 500
Maria Teresa de Filippis em seu Fiat 500
Foto: Arquivo pessoal

A pilota se manteve no automobilismo e, depois de dez anos, chegou à principal categoria, a Fórmula 1. Sem ambições de pilotar para a equipe de Enzo Ferrari, Maria correu pela Maserati e, posteriormente, pela Porsche. Em 1958, tentou pela primeira vez se classificar para uma corrida oficial, o GP de Mônaco, mas terminou a classificação na posição 21 entre 31 inscritos. Ainda que tenha ficado à frente de grandes nomes, como Bernie Ecclestone, na época o sistema da classificação era diferente e apenas os 16 primeiros participavam da corrida. 

Maria Teresa de Filippis no GP de Mônaco de 1958
Foto: Véloce Today

No GP da França, porém, Maria não teve nem a oportunidade de buscar a classificação. O motivo? Ser mulher. Durante a coletiva de imprensa, o diretor da prova, Toto Roche, contou que a pilota não participaria do GP e levou uma foto dela para mostrar e alegar que uma jovem tão bela não deveria “usar nenhum capacete que não fosse um secador de cabelo”.

Preconceito ainda continua

Os anos passaram, os campeonatos também, e pouquíssimas outras mulheres apareceram nas pistas da Fórmula 1. Ainda que nos paddocks a presença feminina seja cada vez maior - muito longe da majoritária masculina, mas, de qualquer forma, maior -, o mesmo não acontece nos cockpits. E não por falta de opções.

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Tatiana Calderon, Sarah Bovy e Alice Powell são algumas das mulheres que disputam provas de automobilismo atualmente, mas um nome principal tem ganhado os holofotes: Jamie Chadwick.

Jamie Chadwick é a principal pilota da W Series
Foto: W Series/ Divulgação

A britânica atualmente corre na W Series, categoria disputada apenas por mulheres, que serve de apoio à Fórmula 1 e, desde 2019, quando teve início, busca promover mais pilotas e abrir portas principalmente para a categoria à qual serve de apoio - o que, ainda que seja uma bela teoria, não tem funcionado na prática.

No próximo domingo (24), acontece o GP da França de F1 e, assim como em 1958, quando Maria foi impedida de disputar a prova, nenhuma mulher estará no grid. A diferença, porém, é que dessa vez também ocorre a primeira corrida da W Series na França e Jamie Chadwick poderá reafirmar - de novo - a sua liderança.

Única vencedora de campeonatos na W Series, Chadwick tem conquistado um feito inédito até então: venceu 100% das corridas da temporada até agora, e soma 100 pontos em quatro provas, 47 a mais que a segunda colocada. A britânica também venceu, em 2021, além do campeonato em si, as duas últimas corridas do ano, ou seja, são seis corridas seguidas estando no lugar mais alto do pódio, e 11 consecutivas entre as três primeiras.

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De todas as 18 corridas realizadas pela W Series teve até hoje, somando as de 2019, 2021 e 2022 (a temporada de 2020 foi cancelada devido à pandemia de covid-19), Jamie Chadwick venceu 10 e subiu ao pódio em 16, um aproveitamento absurdamente maior que o de qualquer outra da categoria. Os números parecem suficientes para provar sua capacidade na pilotagem, mas não são suficientes para que ela tenha vaga em outra categoria maior, como a Fórmula 3, 2 ou 1.

Jamie Chadwick vencendo a corrida de Barcelona de 2022
Foto: W Series/ Divulgação

Jamie é pilota de desenvolvimento da Williams desde 2019, mas nunca pilotou num GP de Fórmula 1, nem nos treinos livres; não tem vaga na Fórmula 2, principal porta para a Fórmula 1;  tampouco na a Fórmula 3, principal porta para a 2. Jamie tem apoio, mas nem tanto assim. Como se a ideia de apoiar uma mulher fosse boa para a imagem vista por parte do público, mas a de colocá-la no caminho da Fórmula 1 fosse ruim para outra. Talvez seja exatamente isso, arrisco dizer.

E, de novo, mulheres são impedidas de correr, seja por razões explícitas ou veladas, por não poder usar capacete que não seja o de secador de cabelos ou por ter todas as portas trancadas. Porque é isso que tem acontecido entre a W Series e a Fórmula 1. A categoria pode até ter a intenção de abrir portas, mas não importa o quão grande seja o esforço para virar cada uma das maçanetas se existem chaves trancando cada uma delas do lado de dentro. 

A justificativa usada por Toto Roche contra Maria Teresa é agora um óbvio absurdo e, quanto a isso, nem me estenderei. Entretanto, destacarei outra, a do conhecido membro da RBR que alegou, em 2019, que a Fórmula 1 é muito física para as mulheres e que a categoria impõe exigências físicas que não pertencem à natureza feminina.

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Em entrevista ao The Guardian, Jamie Chadwick disse que gosta de acreditar que as mulheres podem sim competir contra homens no automobilismo, e acrescentou: "se é fisicamente possível e mulheres podem competir contra homens, como fazemos isso acontecer?”. Em relação à possibilidade de mulheres e homens não conseguirem competir na mesma categoria por conta do físico, ela ainda ressaltou: “se o esporte quer as mulheres competindo, temos que retomar e entender o motivo (de mulheres e homens possivelmente não conseguirem competir na mesma categoria)”. Sem retomadas necessárias, tudo indica que é possível.

Um estudo feito pela Michigan State University, que utilizou dados como a frequência cardíaca, respiratória e temperatura corporal, mostrou que mulheres pilotas até com 10 anos a menos de experiência que os homens reagem e respondem tão bem quanto eles na pista, correndo. Ou seja, as justificativas, ou tentativas delas, que se baseiam em capacidade física, também caem por terra e não são suficientes, tampouco conexas, para explicar a inexistência de mulheres no grid da maior categoria do automobilismo.

Sendo assim, poucas coisas parecem separar o GP da França de 1958 e o de 2022 além dos anos, afinal, o empecilho ainda é feito, mas agora de um jeito novo, quieto e discreto. Outra coisa que também não mudou foi a persistência. As mulheres continuam buscando a maior categoria do automobilismo mundial, como quem carrega a esperança - talvez, sobretudo, porque ela se faz necessária - de que, de tanto tentar abrir as portas, elas finalmente caiam. Ou, quem sabe, contra todas as probabilidades, alguém do lado de dentro as destranque.

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