Para começar a falar de um sonho, precisamos conhecer a história do sonhador. Débora Bezerra de Menezes é uma paulistana que nasceu com uma má formação congênita no braço direito e a primeira da família a possuir uma deficiência. Apesar de seus pais não saberem lidar inicialmente com a falta do membro, com o tempo, tudo se tornou só um detalhe.
Mas, para os olhares de fora, não era só um detalhe. Ao iniciar a pré-escola, os julgamentos das demais crianças sobre a deficiência chegaram como um “yop tchagui”. A vontade de desistir nas primeiras semanas era grande, e a mãe a ajudou a enfrentar essa barreira.
Ao alcançar o ensino fundamental, Débora precisava buscar uma alternativa além da mãe, e aí vem a descoberta da educação física escolar, que se tornou um meio de transformação. Quando os outros alunos viram que ela conseguia jogar todas as modalidades, uma barreira do preconceito foi ultrapassada.
"Independente de ser diferente das outras crianças fisicamente, isso não me tornava uma pessoa diferente de buscar meus objetivos, de querer os meus sonhos. Eu poderia sonhar e correr atrás deles como qualquer outra pessoa que tivesse todos os membros."
A formação no esporte
Débora jogou por 12 anos futsal e futebol society, modalidade que era a grande paixão e responsável por construir a base para os demais esportes. Aos 19 anos de idade, ela precisou pendurar as chuteiras e, apesar de, na época, trabalhar com administração e ter contato com áreas diferentes que o esporte, não teve dúvidas de qual seria sua formação: a educação física.
A graduação na área lhe proporcionou iniciar, de fato, sua carreira paralímpica. Na faculdade conheceu o Movimento Paralímpico, no qual iniciou no vôlei sentado, que ficou por pouco tempo por causa das dificuldades de conciliar trabalho e esporte.
Depois, com a ajuda de um professor, ingressou no atletismo e se identificou com o lançamento de dardo. Chegou até a quebrar recordes na modalidade, mas precisou optar por se dedicar ao esporte ou finalizar sua graduação. As artes marciais, então, chegaram de forma inusitada.
"Um professor de artes marciais pediu para que os alunos fizessem uma atividade que englobasse algum aluno com deficiência, e, por acaso, quem era a única deficiente que tinha na faculdade? Débora! Então todo mundo veio atrás de mim".
O primeiro contato veio no boxe; depois, se aventurou no taekwondo, como hobby. Sem a pressão de competir, ela foi crescendo na modalidade.
Mas o sonho de representar o Brasil na Paralimpíada ainda era presente, e o lançamento de dardo poderia proporcionar isso. A oportunidade enfim chegou quando Débora foi convocada para participar do lançamento de dardo nos Jogos Rio-2016.
Porém, por falta de atletas estrangeiras, a categoria foi cancelada naquela edição. A frustração fez com que ela quisesse desistir de tudo nos três meses após o evento.
"Eu falei, 'minha história não pode acabar desse jeito', porque o que sempre me motivou a continuar no esporte, além da transformação, foi de querer deixar um legado para o meu país."
Mas sabe aquele ditado que “Quando o mundo fecha uma porta, Deus abre uma janela”, pois realmente aconteceu assim para Débora. Depois da decepção veio o convite para ingressar na seleção de parataekwondo.
"Esse convite foi a virada de chave que eu falei. Não posso desistir do esporte, eu posso desistir de uma modalidade, mas o esporte foi tão impactante na minha vida, por que desistir de tudo? E a partir daí que eu comecei, de fato, a olhar o taekwondo como uma modalidade que me levaria a uma paralimpíada."
O parataekwondo
A partir de 2016, Débora começou a treinar realmente para conquistar uma medalha mesmo sem ajuda financeira. Quatro anos depois, o paratekwondo foi confirmado como uma modalidade estreante nas Paralimpíadas de Tóquio, ocorrida em 2021.
"Quando é para ser na modalidade, as coisas acontecem, quando não é, é realmente para te preparar para algo muito melhor. E tudo o que eu fiz não foi em vão, muito pelo contrário, tudo o que eu fiz só me levou realmente onde eu deveria estar, no parataekwondo".
A atleta terminou na quinta colocação no primeiro mundial disputado. Desde então, Débora sempre procura valorizar o trabalho dos profissionais que nunca desistiram de ajudá-la a conquistar as vitórias, principalmente em 2017, quando a dificuldade financeira bateu na porta e fez com que ela pensasse em não seguir na modalidade.
Hoje, Débora é a primeira campeã mundial de parataekwondo do Brasil, a primeira atleta qualificada na história do Taekwondo brasileiro pelo ranking mundial, a segunda melhor do mundo e medalhista de prata em Tóquio-2020.
O esforço foi tanto que, antes das Paralimpíadas de Tóquio, Débora sofreu no Parapan de Lima um overtraining, também conhecida como a Síndrome do Sobretreinamento, que se caracteriza quando o atleta realiza exercícios excessivos, além do que seu corpo é capaz de se recuperar. A pandemia em 2020, então, se mostrou primordial para a retomada.
"Para mim a pandemia foi algo que a gente perdeu muita gente, foi algo muito sério, mas que pra mim eu entendi como uma segunda chance, de ressignificar tudo aquilo que eu passei."
Para realizar o sonho de 20 anos, valia tudo. As dores eram muito fortes. Débora foi até a final paralímpica contra a adversária que ganhou o ouro no mundial, Guljonoy Naimova, do Uzbequistão, e ficou com a prata.
A falta do apoio financeiro
Porém, por trás de uma conquista, há as dificuldades escondidas. A questão financeira ainda é essencial para os atletas. Débora comenta que nem sempre teve patrocínio e por muito tempo precisou bancar seu sonho. “Eu sempre tive que trabalhar, estudar, para depois pensar em ser atleta. O primeiro ponto é esse investimento para os nossos atletas."
Quando em 2018 passou a receber o Bolsa Atleta, um dos maiores programas de incentivo financeiro do governo para que atletas de alto rendimento possam se dedicar exclusivamente ao esporte, Débora realmente pôde ser atleta em tempo integral e crescer como sempre almejou.
"Depois que eu comecei a me dedicar 100% ao esporte, minha carreira decolou. Porque eu não precisava acordar 4 horas da manhã, fazer 8 horas de trabalho, enfrentar ônibus, metrô para depois ser atleta. O meu cenário como atleta mudou muito. O que eu não consegui em um ano e meio de resultado, em seis meses eu consegui uma medalha em mundial."
Até hoje Débora é beneficiada com o Bolsa Atleta, já que para adquirir outros patrocínios são inúmeros quesitos que, às vezes, parecem até inalcançáveis. Ela enfatiza sobre o que mais as empresas querem para enfim apoiarem os atletas.
"O que eu preciso fazer mais para você me patrocinar? Eu estou aqui representando meu país, isso não é algo importante para a marca? Não dá para entender o que realmente as marcas e os patrocinadores querem mais. E parece que o processo de patrocínio para o paradesporto e para o convencional é diferente. Às vezes o cara não precisa ter uma medalha tão expressiva quanto a de Jogos e tem patrocínio melhor que eu que sou medalhista paralímpica."
O preconceito
E, como já sabemos, é claro que Débora sofreu inúmeros preconceitos em sua trajetória, mas as situações só fizeram com que ela amadurecesse mais cedo, construísse uma postura mais firme e não desistisse tão facilmente. "Eu não preciso apontar o dedo para o outro e falar que ‘você não tem metade de uma parte do corpo’ para eu me sentir melhor que o outro. Eu não preciso disso."
Ela conta também sobre um momento de preconceito mascarado que enfrentou numa avaliação para entrar em uma competição de futebol. Débora ficou cansada devido aos testes físicos intensos que a fizeram passar e não foi escolhida por "precisar de um cardiologista" e "necessitar de um atestado médico por ter passado mal".
"Aquilo para mim ficou muito claro, porque eu era a única atleta que tinha deficiência na equipe, não tinha nenhuma outra. Então para mim ficou muito claro que realmente existiu alguma coisa ali. Entende-se que se eu era a única atleta que, mesmo tendo uma deficiência, eu dava um show dentro de quadra, por que não me levar?"
O futuro
A resiliência venceu. E, para o futuro, mais dois ciclos paralímpicos pela frente. Paris-2024 e Los Angeles-2028 são o foco de Débora, além de também finalizar a recuperação da lesão.
Dentro disso, Débora sonha em poder conquistar a medalha paralímpica de ouro, que pode fazer companhia com a prateada que já está pendurada e tatuada em sua mão esquerda, assim como as demais conquistas.
“E, se Deus quiser, trabalhar esses dois ciclos para trazer a douradinha”.