A imagem de Lia Thomas, nadadora norte-americana, isolada de suas concorrentes no pódio da NCAA, tradicional liga universitária americana, é um retrato do que mulheres trans enfrentam no dia a dia do esporte. Elas sofrem com a exclusão, com o preconceito e, principalmente com o medo de serem impedidas na profissão, mesmo estando aptas a competir. Este é o caso de Lia, campeã das 500 jardas livre da NCAA.
As agressões, ainda que silenciosas, causam feridas emocionais que dificilmente são cicatrizadas.
“O que aconteceu com a atleta [Lia Thomas] foi, sim, um ato transfóbico. E a questão é que esse tipo de situação exclusiva, de humilhação, causa um profundo sofrimento no ser humano por trás da atleta. O sentimento de não pertencimento é muito doloroso. Infelizmente, as mulheres trans ainda são vistas como homens neste contexto”, afirmou Paloma Mello, psicóloga do esporte, que atuou na Rio-2016 e trabalha na Secretaria de Cultura, Esportes e Cidadania de São Vicente, SP.
O caso de Thomas é apenas um dentro de todo um cenário que exclui as mulheres transgênero do cenário esportivo. O debate, que já existe há mais de 10 anos, ganhou novas diretrizes do COI (Comitê Olímpico Internacional) em novembro de 2021, que validam a participação delas no ambiente competitivo, sem pressupor que o gênero de nascimento é um fator determinante para ter desempenho melhor.
Afinal, todas as atletas passam por tratamentos hormonais para disputar competições oficiais. O que conta é a trajetória no esporte.
O item 5.1 das normas do COI diz o seguinte: "Nenhum atleta deve ser impedido de competir ou deve ser excluído da competição com base em uma vantagem competitiva injusta não verificada, alegada ou percebida devido a suas variações de sexo, aparência física e/ou status de transgênero”.
"Até que as evidências determinem o contrário, os atletas não devem ser considerados como tendo uma vantagem competitiva injusta ou desproporcional devido às suas variações de sexo."
As orientações recentes conferem aos órgãos reguladores de cada esporte o que pode ser visto como uma vantagem competitiva sobre os demais concorrentes. Além disso, deve ser levada em consideração a natureza de cada modalidade. Não pode haver uma fórmula exata para todas as categorias, até porque cada uma possui suas particularidades.
No entanto, mesmo com o aval do COI, principal órgão regulador do esporte, a todo momento atletas trans são bombardeadas pela mídia, por ataques nas redes sociais e por pessoas que questionam a existência delas neste universo. O sucesso, então, nem se fala.
Segundo relatos da imprensa local, quase não houve aplausos para Lia Thomas após o anúncio de que era a vencedora da prova. Na sequência, ela ainda foi alvo de insultos de torcedores presentes que não concordavam com a sua participação na NCAA.
“Tento ignorar isso o máximo que posso. Tento focar na minha natação, no que preciso fazer para estar pronta para as provas. Apenas tento bloquear todo o resto. Significa o mundo para mim estar aqui”, desabafou a atleta à ESPN americana.
Alguns dias depois do evento, o governador da Flórida, Ron DeSantis, emitiu um comunicado refutando a medalha de ouro de Thomas. Ele disse rejeitar o resultado obtido pela nadadora trans e "proclamou" a segunda colocada, Emma Weyant, como campeã.
O trauma emocional enfrentado por Lia esteve em destaque nos últimos dias, com a divulgação de fotos dela antes da transição e inúmeros comentários ofensivos. Mas este é o panorama quase que diário enfrentado pela maioria das atletas. Muitas acabam abandonando o esporte por conta do fardo que carregam mentalmente.
“Vemos gente importante, pessoas famosas colocando indignação ao falar sobre a participação de trans no esporte. Mas o que me chama mais a atenção é que as atletas trans acabam se esforçando duas ou até três vezes mais do que uma mulher cis para estarem lá”, ponderou a terapeuta especialista em sexualidade e questões de gênero, Márcia Lawant Atik.
“Elas passam por um tratamento rigoroso, sofrem mudanças drásticas no corpo e na mente, e ainda assim conseguem criar resiliência para praticarem o esporte que amam. E eu já ouvi o absurdo de gente falando: ‘Ah, virou mulher para poder competir e ter vantagem’. É por esse tipo de absurdo que essa pauta tem que ser da sociedade e não só das pessoas trans”, acrescentou.
Inserção trans no esporte brasileiro
Tifanny Abreu é um exemplo local de como a transfobia ultrapassa os limites dos fatores biológicos. O controle da taxa de testosterona da jogadora de vôlei, que atualmente defende o Osasco na Superliga, fica em torno 0,2 nmol/l há muitos anos - número 50 vezes menor do que o estabelecido pelo COI, em 2015. Apesar disso, os questionamentos sobre a participação dela são constantes.
Jogadoras do mais alto nível brasileiro se mostraram críticas à Tifanny e reforçaram esta opinião diversas vezes a respeito da inclusão de transexuais no vôlei. Como geralmente apresentado nestes discursos, a presença de mulheres trans tira oportunidades de mulheres cis conquistarem vagas em clubes e terem espaço.
“Existe uma crença completamente equivocada de que uma pessoa trans tem benefício ou alguma vantagem por ser assim. A verdade é que é totalmente o contrário. Ao invés de um caminho fácil, quando uma pessoa trans decide fazer a transição e ser quem é, muitas portas se fecham”, disparou Paloma Mello.
“A saída para essa dura realidade é a conscientização. A ignorância ainda é o problema da sociedade que faz com que os preconceitos caminhem de geração em geração. A inclusão é uma pauta urgente na sociedade… E o esporte é um importante meio de transformação social. Basta ligar os pontos.”