Os desafios legais da dupla maternidade

Mesmo com mais de 45 mil registros em certidões de nascimento por duas mães nos últimos nove anos, leis do país não garantem direitos

7 mai 2022 - 05h00
(atualizado em 18/5/2022 às 19h02)
A decisão de quem vai gestar o bebê é particular, mas as tentativas costumam ser duplas
A decisão de quem vai gestar o bebê é particular, mas as tentativas costumam ser duplas
Foto: iStock

Hoje é cada vez mais comum acompanhar o processo de gravidez que envolve duas mulheres. De perfis nas redes sociais a casais de famosas como Nanda Costa e Lan Lanh, mulheres lésbicas compartilham a realidade da chamada dupla maternidade. De acordo com a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR), entre 2013 e fevereiro de 2022, foram realizados 47.124 registros de crianças por duas mães em todo o Brasil.

Se por um lado, a dupla maternidade tem ganhado as redes sociais e os lares brasileiros, a legislação ainda está longe de contemplar esse modelo familiar. Por isso, o Nós entrevistou a advogada Lucila Lang do escritório Lang & Michelena Advogadas que atende, em especial, casos de pessoas LGBTQIA+, que relatou os principais desafios enfrentados por mulheres lésbicas na hora de ter filhos.

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Lei ainda é restrita para quem gesta

A decisão de quem vai gestar o bebê é muito particular. Pode ser quem nutre um maior desejo ou quem está mais apta sob a perspectiva de saúde física e mental, por exemplo. Em muitos casos a tentativa é dupla, com ambas as mães passando pelos processos para engravidar. No entanto, na maioria dos casos, apenas uma das mulheres do casal engravida, o que faz com que automaticamente, as leis sejam exclusivas para elas. "Culturalmente nossa sociedade parte do princípio que o lugar da maternidade está ligada à gestação e essa visão é geral e não só da lei", explica Lucila.

Licença-maternidade e salário-maternidade são os principais direitos quando se fala em parentalidade e, em geral, estão atrelados. "São coisas diferentes mas que acontecem juntas. A licença é o período de afastamento do trabalho, já o salário significa a verba disponibilizada durante o período de afastamento", explica a advogada.

Para quem gesta, a legislação prevê 120 dias; já quem não, tem direito a cinco dias na chamada licença-paternidade, que não conta com remuneração. Outro benefício também exclusivo de quem gesta é a estabilidade, que proíbe a empresa de desligar a pessoa quando retornar ao trabalho. "Essa falta de suporte faz com que muitas mulheres e pessoas LGBTQIA+ como um todo não confrontem as empresas que trabalham, afinal não existe nenhuma garantia de suporte financeiro ou de que seguirão contratadas após a licença", relata.

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Esse possível confronto se dá, em especial, porque com a falta de legislação cabe às empresas o estabelecimento de políticas que beneficiem quem não gesta, sendo necessária a ação de vários agentes: se o RH está disposto a comprar a briga dentro da empresa, quais são as políticas já estabelecidas desta organização, se a gestão apoia ou não a causa e assim por diante.

Mãe e Mãe

Outro desafio encontrado pelas mães é o próprio registro do bebê. O provimento 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça prevê a lavratura do registro de duas mães em caso de reprodução assistida, desde que se apresente uma série de documentos, incluindo laudos da clínica de fertilização, o que já exclui automaticamente casais que optam por outras formas de reprodução como inseminação caseira. "Existe a certidão de nascido vivo que é emitida pelo hospital, que depois de muita luta passou a trazer recentemente os campos de genitor(a) 1 e genitor(a) 2, ao invés de pai e mãe, e mesmo com essa certidão e os documentos da fertilização tem cartório que recusa o registro", detalha a advogada, revelando que o mesmo não acontece com casais heterossexuais cisgênero.

Para registrar o bebê com dupla maternidade as mães enfrentam uma série de burocracias
Foto: iStock

A legislação também só autoriza o nome de ambas as mães na certidão de nascimento se o casal for legalmente casado, porém, caso um homem cisgênero chegue no cartório sem nenhuma relação formal com a mulher que deu à luz, não é exigida nenhuma documentação específica. "São processos burocráticos completamente diferentes e sem nenhum motivo", aponta a advogada.

No momento, segue na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5423/20, proposto por Maria do Rosário (PT-RS), que busca garantir o direito de registro de dupla maternidade ou paternidade a casais homoafetivos que tiverem filhos independentemente do estado civil, mas sem previsão de avanço nas tramitações.

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Falta de acesso acentua desigualdade

Lucila aponta que nunca tomou conhecimento de um caso de inseminação caseira em que as mães conseguiram o registro, e consequentemente acesso aos direitos, sem judicialização. "Conforme vai se criando jurisprudência o caminho encurta e hoje já vemos casos onde os pedidos judiciais se dão no começo da gestação e ao nascer já há um parecer, porém, por anos acompanhei crianças com três, quatro anos de idade sem o registro das duas mães", relata, lembrando ainda que o casal precisava apresentar uma série de laudos de assistência social e psicólogos para conseguir o direito de registrar o filho ou filha.  

Ainda que o país conte com um programa de reprodução assistida público, via SUS, o tempo médio de espera é de quatro anos, o que faz com que muitas pessoas não consigam esperar, inclusive pelo fator etário, que pode inviabilizar a gestação. Para uma pessoa de 30 anos, a taxa de sucesso do procedimento de fertilização assistida é de 34%. Já aos 45 anos, essa taxa cai para 12%. 

"Todo o processo é muito caro, desde o acesso a medicação, passando pelo rastreamento genético e chegando aos procedimentos em si. E isso faz com que a questão do direito reprodutivo seja uma questão de classe, raça e território", finaliza Lucila, fazendo referência ao fato de que apenas oito dos 27 estados oferecem o serviço gratuitamente ou a um custo razoável: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Distrito Federal, Goiás, Bahia, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul.

Fonte: Redação Nós
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