Para cacica guarani, colonização tornou indígenas machistas

No Dia da Consciência Indígena, comemorado nesta sexta-feira (20), Alice Guarani fala sobre como é ocupar um espaço que sempre foi masculino

20 jan 2023 - 05h00
(atualizado em 31/1/2023 às 15h34)
"Precisamos olhar sempre para a questão do gênero, pois ser mulher incomoda", afirma Alice
"Precisamos olhar sempre para a questão do gênero, pois ser mulher incomoda", afirma Alice
Foto: Igor Sperotto / Igor Sperotto

Seu nome em guarani é Kerexu Takuá, que significa "Filha da Taquara", mas também é conhecida por Alice Martins e, principalmente, Alice Guarani. Mãe de três filhos e avó de dois netos, ela tem 40 anos é uma das poucas cacicas do Rio Grande do Sul. "De comunidade urbana sou a primeira", conta Alice, que mora em Porto Alegre e está à frente do Centro de Referência Indígena Afro do Rio Grande do Sul, espaço que celebra tradições, conversa sobre o nome e está alinhado às demandas da comunidade multiétnica à qual pertence.

Em entrevista ao Terra NÓS, Alice fala sobre o trabalho como militante e como enfrenta o machismo dentro de seu próprio povo. "Não posso baixar a guarda", avisa.

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Desde quando você é cacica e o que foi preciso para se tornar uma?

Meu cacicamento aconteceu no dia 19 de abril de 2020, data em que se celebra o Dia dos Povos Indígenas, durante a pandemia. Eu já tinha sido escolhida pelos meus parentes, que é como chamamos os membros da nossa comunidade, por causa da minha atuação no Centro de Referência Indígena Afro do Rio Grande do Sul. A demanda surgiu a partir do reconhecimento pelo meu trabalho. Cada aldeia tem sua maneira de eleger as lideranças, então só posso falar do meu lugar de indígena guarani periférica urbana e da responsabilidade que tenho estando nesse espaço que sempre foi ocupado por homens. A cerimônia aconteceu num terreiro de Umbanda porque desde 2018 sou umbandista, uma religião que tem origem mais indígena do que negra. Nossa espiritualidade [dos povos indigenas] se dá de várias maneiras.

Existe machismo entre os indígenas?

Precisamos olhar sempre para a questão do gênero, pois ser mulher incomoda. Há machismo em diversos segmentos do movimento indígena e muito preconceito contra os corpos-territórios femininos. Durante o processo de colonização muitas questões do patriarcardo foram absorvidas e quase não se fala sobre isso. Somos poucas cacicas aqui no Rio Grande do Sul, um Estado bem machista, sexista, homofóbico e transfóbico. De comunidade urbana, sou a primeira cacica daqui. 

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Na campanha "Eu Sou Respeito", de 2021, desenvolvida pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Rio Grande do Sul (PRDC/RS)
Foto: Reprodução/Instagram / Reprodução/Instagram

Quando você começou sua militância?

Nasci na periferia, assim como meus pais, mas seguindo as tradições. Desde os 12 anos acompanho meu pai, que fazia militância comunitária. Ele foi conselheiro do Orçamento Participativo, que foi uma política pública de muita importância no município de Porto Alegre e se tornou referência mundial. Ele lutava por acesso à saúde, à educação, à cultura, à moradia e ao saneamento básico para as pessoas do bairro Agronomia, na perferia de Porto Alegre. Então, sigo os passos dele.

Quais são as suas atividades como cacica? Seu estilo de liderar é diferente?

Cada uma tem seu jeito de liderar e considerar as demandas de sua comunidade. Inclusive, existem lideranças que não são cacicas, mas fazem muito mais do que se fossem. Eu lidero à minha maneira, acredito que a minha liderança não é de poder, mas de responsabilidade. Caminho junto com o povo, uno a minha voz à voz das pessoas, batalho a questão dos direitos humanos e políticos públicos e me encarrego das articulações e conversas com representantes políticos. E também tem o trabalho social: na pandemia, por exemplo, o Centro de Referência se encarregou de arrecadar e distribuir cestas básicas e produtos de higiene como o álcool gel para comunidades mais afastadas. Montamos uma plataforma só para isso.

Liderado por Alice, Centro de Referência arrecadou e distribuiu cestas básicas e produtos de higiene para comunidades mais afastadas
Foto: Reprodução/Instagram / Reprodução/Instagram

Quais serão as suas principais lutas em 2023?

Nossa luta é diária por sermos corpos-territórios indígenas em contexto urbano, ou seja, que não costuma ser mapeado nem associado à de realidade de povos indígenas. A cultura indígena não existe só dentro da aldeia, mas em quem nós somos. Por isso, a ideia é ter uma maior organização para reivindicar políticas públicas no contexto urbano. Entre as principais pautas coloco saúde, acesso à universidade, respeito à cultura, mulheres e moradia. Com a criação do Ministério dos Povos Indígenas espero a efetividade em demandas que até agora não foram contempladas.

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Você tem uma imagem muito potente nas fotos em suas redes sociais. Transmite força, senso de justiça, coragem. Você se permite ser vulnerável de vez em quando?

Não posso baixar a guarda pelo preconceito que enfrento. Mas tenho os momentos de mãe e avó que não posto, os momentos de ser a Alice Guarani, viver junto dos meus e me fortalecer para seguir lutando. Sou bem feliz em relação aos meus filhos e netos e sobre quem eles são.

"Não posto os momentos de ser a Alice Guarani, viver junto dos meus e me fortalecer para seguir lutando", diz cacica
Foto: Reprodução/Instagram / Reprodução/Instagram
Fonte: Redação Nós
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