Anos de abuso, fuga, deboche: economista homossexual supera traumas ajudando outras vítimas

"Sofrer preconceito na rua é uma coisa, mas sofrer preconceito dentro de sua própria casa é muito pior", desabafa Robhério Lima

17 mai 2023 - 05h00
(atualizado às 10h57)
Vítima de lgbtfobia na infância, hoje Robhério administra página voltada a ajudar vitimas de violências de sexualidade e gênero
Vítima de lgbtfobia na infância, hoje Robhério administra página voltada a ajudar vitimas de violências de sexualidade e gênero
Foto: Reprodução/Instagram

Nascido em Garanhuns, no agreste de Pernambuco, Robhério Lima foi adotado aos três meses de idade por um casal de agricultores. Na infância, seu desinteresse por brincadeiras consideradas 'masculinas' colaboraram para que sua adoção fosse vista com maus olhos pelos familiares, que, além do distanciamento, proferiam xingamentos associados a sua orientação sexual, por mais que fosse incompreendida na época. 

"Eu cresci ouvindo coisas como 'não é possível que fulana decidiu pegar esse moleque viado para criar', ou 'você deveria ter sido jogado em um poço'. Muitas violências psicológicas e verbais que ainda reverberam em mim", lembra Robhério, que se identifica como um homem cis homossexual. 

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Além do preconceito no âmbito familiar, o correspondente bancário conta que o ponto mais traumático de sua infância está associado a outro enfrentamento comum de pessoas LGBTQIA+: os abusos sexuais. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 evidenciam as experiências relatadas: foram registrados 179 casos em 2021, um aumento de 88,4% em relação a 2020. 

Segundo Robhério, os atos de violência que sofreu entre os 8 e 13 anos de idade eram praticados por um tio, como uma forma de "castigo" por sua sexualidade.

"Naquele momento, eu não tinha uma compreensão sobre minha orientação, mas o que eu ouvia era que quando eu crescesse, eu não iria ser gay, porque o castigo já estava sendo dado. ‘Você vai virar homem', ele dizia. Me sentia coagido e morrendo um pouco a cada dia", comenta. 

"Sofrer preconceito na rua é uma coisa, mas sofrer preconceito dentro de sua própria casa, onde você espera afetividade, é outra muito pior."

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Os abusos foram mantidos em segredo por Robhério, que era vítima de constantes ameaças do tio. A realidade, que ele descreve como "cárcere privado", levou o correspondente bancário a romper os laços com a família aos 15 anos de idade. Foi quando decidiu pegar um ônibus e começar uma nova história em São Paulo, capital, após uma tentativa de suicídio.

"Ainda estou vivendo meu processo de cura"

Sem recursos, Lima conta que precisou dormir durante quinze dias no porão de uma igreja, até que uma família soube de sua história e o ajudou, alugando um apartamento mobiliado a partir de doações. Na época, Robhério até chegou a procurar uma delegacia da Polícia Civil em Guarulhos, para expor os episódios de violência sexual que sofreu. No entanto, ela lembra que foi tratado com 'deboche' pelo delegado a quem apresentou o caso.

Robhério e sua 'segunda família adotiva', em São Paulo
Foto: Reprodução/Instagram

"Ainda estou vivendo meu processo de cura, cuidando da minha depressão, dos traumas que ficaram. Se eu disser que estou 100% curado, estou mentindo. É uma luta diária, porque foram muitos anos me culpabilizando pelos abusos que sofri, tanto os psicológicos quanto os sexuais", lamenta Robhério.

Além de acompanhamento psicológico e uma rotina de exercícios físicos, desde 2016 o correspondente bancário administra a página 'Movimento Lute Com ele'. Ele já ajudou mais de 30 pessoas desde 2016, através da realização de 'vaquinhas virtuais' e divulgação de histórias de pessoas que foram vítimas de lgbtfobia e precisam de apoio financeiro ou psicológico. 

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"Quando se fala em preconceito na sociedade, nós esquecemos de considerar o que acontece no âmbito familiar, que é o pior. Sofrer preconceito na rua é uma coisa, mas sofrer preconceito dentro de sua própria casa, onde você espera afetividade, é outra muito pior. Hoje, escolho diariamente utilizar minha história para alertar e ajudar outros garotos e garotas, principalmente os da minha comunidade", explica.

Uma pessoa LGBTQIA+ morre a cada 32 horas

De acordo com dossiê divulgado pelo Observatório de Mortes Violentas Contra LGBTI+ na última quinta-feira, 11, o Brasil registrou ao menos 273 mortes violentas de pessoas LGBTQIA+ em 2022. Desses casos, 228 foram assassinatos, 30 suicídios e 15 tiveram outras causas, como morte decorrente de lesões por agressão. A média é de 1 morto a cada 32 horas.

Contato entre Robhério e os pais foi retomado 11 anos após sua saída de Pernambuco
Foto: Acervo pessoal

Travestis e mulheres trans representam maior parte dos mortos (58%), seguidos por gays (35%), lésbicas (3%) e homens trans (3%). Pessoas não binárias representam 0,4% dos registros.

Apesar de os números colocarem o Brasil no topo entre aqueles que realizam este tipo de levantamento, o relatório apresenta apenas um recorte sobre a lgbtfobia. Além de ser baseado em notícias publicadas na mídia, não há dados oficiais divulgados pelo Estado.

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Na última sexta-feira, 12, os ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos afirmaram que essa realidade pode mudar. Segundo informado, o governo organiza a formação de um grupo de trabalho para extrair e analisar dados oficiais sobre casos de lgbtfobia no país, incluindo homicídios. 

Além disso, devem ser discutidos o aprimoramento dos processos de acolhida de denúncias, atendimento e melhor encaminhamento das vítimas em todos os estados. O anúncio foi feito ao jornal Folha de S.Paulo pela pasta comandada por Flávio Dino.

A elaboração de um banco de dados que revelem a realidade da população LGBTQIA+ é uma antiga demanda das entidades ligadas à causa. Desde 2000, organizações como o Grupo Gay da Bahia e Associação Nacional de Travestis e Transexuais trabalham de forma independente para levantar dados associados à comunidade. 

Fonte: Redação Nós
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