'Bicha', 'trans' e mais: empresas se destacam ao assumirem identidade LGBTQIA+ em seus nomes

Escolha de nomes é uma forma de filtrar interações LGBTfóbicas e uma maneira de lutar por direitos

10 jun 2023 - 10h16
(atualizado às 10h54)
AIsha (esq.) é trancista, enquanto Bruna (dir.) é advogada
AIsha (esq.) é trancista, enquanto Bruna (dir.) é advogada
Foto: Arquivo pessoal

Orgulho é uma das palavras que se ouve ao longo do mês de junho, época de reflexão, celebração e luta por direitos para a população LGBTQIA+.  Ainda que o Mês do Orgulho termine no próximo dia 30, um movimento informal, vindo de dentro da comunidade, vem contribuindo para estender o sentimento de orgulho entre as identidades LGBTQIA+ para além desse mês.

Tem sido bastante comum ver empresas e instituições já demonstrando em seus nomes e marcas, a origem LGBTQIA+. Apenas por existir, essas organizações criam um ambiente seguro para membros da comunidade, ajudam a normalizar a aceitação de pessoas LGBTQIA+ e promovem um debate importante entre a sociedade.

Publicidade

Criadora do Estúdio TransCistas, Aisha Vitória Lemos Vitoriano, de 24 anos, é travesti. Nascida e criada em Natal (RN), montou neste ano sua empresa dedicada a penteados afro, em especial tranças.

Aisha explica que escolheu o nome do estúdio a partir de uma brincadeira com as palavras "trans" e "tranças". Para ela, dizer logo de cara que as clientes serão atendidas por uma travesti é uma forma de filtrar quaisquer interações transfóbicas.

"Uma coisa que eu gosto muito de pensar é que as pessoas que se assustarem com a palavra 'trans' são as pessoas que quero afastar daqui."

Penteados feitos por Aisha são feitos em seu estúdio
Foto: Arquivo pessoal

Orgulho que vira sonho

Aisha conta que ter um salão próprio e orgulhosamente travesti é uma forma de sonhar com um futuro mais digno para ela e para outras pessoas.

Publicidade

"Minha meta é ter uma equipe só de pessoas trans e travestis. Que eu consiga ajudar a profissionalizar e tirar muitas delas da prostituição".

Expulsa de casa aos 16 anos, ela começou como transcista colocando extensões de lã no próprio cabelo e no de conhecidas. Quando uma amiga a ofereceu um curso para que ela se profissionalizasse, Aisha agarrou a oportunidade e começou a trabalhar em um salão de beleza. 

"Aprendi muito, mas era muito difícil lidar com tudo isso. Eu pensava nas tranças como uma renda extra, uma forma de sair um pouco da marginalização, sabe? Tinha que conciliar o trabalho, os estudos, porque eu estudava no Instituto Federal do Rio Grande Norte e também a vida nas ruas", se referindo à prostituição, trabalho que, segundo ela, pode ser algo digno.

"Acho que existem profissionais do sexo e pessoas que vendem seus corpos de forma consciente, de forma que gostam daquilo. Quando você tem uma estrutura, quando você tem amparo social, até mesmo a prostituição pode te levar longe. Só que isso não acontece com as pessoas que precisam fazer aquilo. Eu agora estou feliz de poder imaginar que eu vou fazer com que outras 'gatas' saiam da prostituição. Pensar que eu vou ter a escolha ou não é o melhor. Porque quando você olha para a sua cozinha e não tem nada para comer, você não recorre às ruas."

Ser orgulhosamente travesti e TransCista, no caso de Aisha, é executar um sonho de "conseguir criar essa rede de apoio para quem não tem uma família. Tem muitas que perderam a dignidade. E eu luto todos os dias, com unhas e dentes, para não perder a minha. Eu vou usar isso para conseguir fazer com que outras travestis possam sonhar também", finaliza. 

Publicidade
Aisha é travesti e criou o Estúdio TransCista
Foto: Arquivo pessoal

Exclusão do mercado de trabalho

A advogada e especialista em Direitos LGBTQIA+ Chyntia Barcellos confirma que a orientação sexual e a identidade de gênero são fatores que excluem pessoas LGBTQIA+ do mercado de trabalho.

"A força de trabalho é independente das características e identidades de cada pessoa. Mas ainda há muitas pessoas que não conseguem se assumir dentro das empresas por falta de uma política de diversidade, de inclusão", explica Chynthia, que também é autora do livro "Fatos, afetos e preconceitos: uma história de todos os dias", com artigos sobre os avanços e retrocessos na conquista dos direitos da população LGBTIQIA+. 

A advgada acredita que as empresas que se engajarem com a diversidade sexual e de gênero promoverão "transformações para além dos seus colaboradores".

"Isso impacta a vida, a saúde e a força de trabalho das pessoas, reverbera nas famílias e, por consequência, na sociedade e ainda inspira outros empresários. Trabalhar com diversidade e cuidar da inclusão hoje é um ativo para as empresas. Ou seja, quando isso acontece de forma acertada, ela traz lucros, traz mais produtividade, mais criatividade", afirma Barcellos.

Chyntia chama a atenção em especial para a situação vivida pela população trans: mesmo aquelas que têm qualificação para preencher vagas de emprego, nem sempre conseguem ocupar alguns espaços dentro de empresas, por causa da transfobia.

Publicidade

"Por isso, o empreendedorismo acaba sendo uma ponte para essas pessoas", diz. 

Empoderamento

A advogada Bruna Cristina Santana de Andrade, de 35 anos, fundou a Bicha da Justiça, junto com a esposa, depois de realizar um mestrado em Direitos Humanos, no qual pesquisou sobre vulnerabilidade sociais.

"Já queria uma palavra, um termo que fosse autoexplicativo. Queria que enxergassem já de cara essa palavra 'bicha' ressignificada e algo que pudesse chamar atenção para uma perspectiva de empoderamento", conta.

A partir do mestrado, Bruna teve vontade de montar uma empresa que ampliasse a acessibilidade jurídica para minorias. Após algumas análises, ela e sua esposa e sócia decidiram focar a atuação em atendimentos on-line para pessoas de todo Brasil, mas pensando em contribuir com uma minoria específica, a comunidade LGBTQIA+.

"Primeiro, por uma questão de empatia, pois somos da comunidade, então fazia sentido criar uma empresa que gerasse soluções para a comunidade. Segundo, por uma falta de profissionais qualificados. Quando começamos em 2018, existiam menos profissionais especializados nesse público. Terceiro, porque eu considero este público o mais marginalizado sob o ponto de vista jurídico, porque os nossos direitos são muito recentes. A grande maioria desses direitos é garantida a partir de decisões judiciais e você precisa de advogados para exercer esse direito", explica. 

Publicidade

A empresa de Bruna atua em dois escopos. O primeiro é o de educação jurídica focada diretamente no público LGBTQIA+, promovendo cursos, formações, workshops, treinamentos e estrutura jurídica. A Bicha da Justiça também oferece serviços de capacitação para profissionais do mundo jurídico que queiram atuar com este público. 

Nos primeiros momentos da Bicha da Justiça, Bruna diz que sofria muito preconceito no meio empresarial. Demorou, por exemplo, para que investidores acreditassem em seu potencial. Hoje, ela vê vantagem em se posicionar enquanto uma pessoa LGBTQIA+, por uma questão de representatividade, para "gastar o nosso pink money com empresas que fazem sentido", diz.

Bruna e a esposa fundaram a Bicha da Justiça, empresa que presta educação jurídica
Foto: Arquivo pessoal

Apagamento

Para o professor universitário e pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Tiago Duque, ainda há muita pressão social para que as pessoas deixem de tornar pública e visível a sua identidade de gênero e a sua orientação sexual.

Segundo Duque, o maior desafio é para aquelas pessoas que não aceitam a cisgeneridade ou a heteronormatividade como padrão de vida.

"Hoje há mais pessoas publicamente não heterossexuais ou cisgênera se comparado com tempos atrás. Mas, mesmo com mudanças, ainda há um custo social muito alto para muitas pessoas que resolvem se expor em termos de gênero e sexualidade não conformes à expectativa mais valorizadas socialmente", explica Tiago. 

Publicidade

"Para aquelas pessoas que optam [em se assumir], porque têm as condições para fazê-lo, ou conseguem conquistar as condições, seria importante tomar essa atitude se ela não fosse reiterar normas conservadoras e moralizadoras de gênero e sexualidade que excluem os mais diferentes, os que não buscam adaptações à normalidade em termos de identidade de gênero e orientação sexual. Não julgo importante se assumir apenas para ser aceito, sem enfrentar a padronização dos corpos e desejos", continua Tiago, que também é membro da Comissão Permanente Consultiva de Ações Afirmativas da UFMS. 

Tiago avalia que as paradas e as comemorações realizadas em junho são importantes por terem ajudado em conquistas fundamentais para a comunidade LGBTQIA+, como a união civil, a criminalização da LGBTfobia, a despatologização da travestilidade e da transexualidade e o enfrentamento ao estigma da AIDS.

No entanto, de acordo com o sociólogo, esses evento pró-Orgulho não solucionarão todos os problemas enfrentados por pessoas LGBTQIA+ no País e no mundo.

"Mais do que um cenário de aceitação das pessoas LGBTQIA+, a luta deveria ser por mais e outros direitos. Nem sempre os direitos respeitados ou garantidos levam a 'aceitação'. Muitas vezes, para ser aceito tem que 'ser normal', 'igual', e não diferente. A ideia é que a diferença seja garantida e protegida, tendo ou não a aceitação das pessoas", conclui.

Publicidade
Fonte: Redação Terra
Fique por dentro das principais notícias
Ativar notificações