'Burocracia não reconhece casais homoafetivos': pais gays relembram luta por licença-maternidade

Lucimar Quadros e Rafael Gerhardt adotaram o filho, João Vitor, em 2010

18 jun 2024 - 05h00
(atualizado em 21/6/2024 às 17h52)
Lucimar, João Vtor e Rafael
Lucimar, João Vtor e Rafael
Foto: Reprodução/Instagram

Lucimar Quadros e Rafael Gerhardt, de 58 e 49 anos, estão juntos há quase três décadas e são pais de João Vitor, de 13 anos. Eles, que vivem hoje na cidade de Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre (RS), adotaram o menino quando ele era recém-nascido, em 2010, e fizeram história ao se tornarem o primeiro casal gay a conseguir direito à licença-maternidade sem precisar entrar na Justiça.

Em entrevista ao Terra, Lucimar e Rafael contam que a adoção do filho aconteceu de uma maneira inusitada. Na tarde em que conheceram o menino, após cerca de três anos na fila de adoção, quando ele tinha três meses de vida, conseguiram a autorização da juíza para levar o bebê para casa. Eles saíram do fórum com uma autorização de visita prolongada, mas Lucimar não conseguiu tirar a licença-paternidade no banco onde trabalha até hoje com aquele documento, pois não é uma guarda oficial da criança.

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Pais de primeira viagem, os dois estavam com um bebê pequeno em casa e ambos com empregos em tempo integral. Então, precisaram matricular João às pressas em uma creche. Na época, o casal decidiu que Lucimar iria pedir licença do trabalho para cuidar do filho, pois Rafael tinha acabado de mudar de emprego e ainda não estava bem estabelecido na nova empresa. Quando já estava com o menino em casa há um mês, o bancário conseguiu tirar a licença de 5 dias úteis do trabalho, e posteriormente 60 dias, que já era concedida a pais solo e casais homoafetivos, mas decidiu entrar com um processo junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para pedir pelo mesmo tempo que mulheres tiram de licença-maternidade.

"Falaram que tinha que fazer uma carta de próprio punho solicitando essa licença. Não demorou 15 dias, foi bem rápido, eles negaram porque eu não tinha o período gestacional. A gente entrou com o recurso e alegou que não tinha como ter período gestacional, porque a adoção do João era diferenciada, era por dois pais. A resposta demorou um ano", relembra Lucimar.

Quando João já estava com mais de um ano de idade, a família passou por uma audiência, mas as câmaras de julgamento do INSS, em Brasília, negaram o pedido. Então, o casal entrou com outro recurso e Rafael preparou um dossiê de 500 páginas com trechos da Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

"Pensei que se eles querem papel, é isso que eles vão ter. Fiz uma grande pesquisa de outros casos que já tinha tido pareceres parecidos de desembargadores e juízes. Deu mais de um pacote de folhas, deu 500 e poucas folhas. Pensei: 'Vamos dar trabalho para eles também. Se eles querem trabalho, é isso que eles vão ter'", conta Rafael sobre o dossiê, que ele guarda em casa até hoje.

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Dois anos após a adoção de João, a família fez uma nova audiência por chamada de vídeo. "Eles foram votando, e a gente tava meio assustado porque eles estavam negando e ficavam felizes. Só que eles estavam negando o recurso anterior do INSS. No final, foi unânime, porque a gente fez a defesa. O João no nosso colo, acordava, dormia, mamava. Quando saiu o documento, demorou mais um mês para sair a licença porque eles não conseguiam dar licença-maternidade para uma pessoa do sexo masculino", recorda Lucimar.

Foi só então que o bancário conseguiu se afastar do trabalho por quatro meses para se dedicar ao filho. Por mais que o processo administrativo tenha demorado para desenrolar, o casal não sente que sofreu homofobia das pessoas envolvidas, mas sim de toda a burocracia que não reconhece casais homoafetivos, algo que continuaram percebendo em outras situações com o filho.

Um exemplo desse tipo de situação é quando tiraram o primeiro RG de João, e o nome de Lucimar veio no campo da mãe. "Quando fui retirar a identidade, a menina viu que o nome masculino estava ali no lugar da mãe e achou que tinha algum erro, falei que era assim mesmo, não tinha erro nenhum", disse Lucimar. "A pessoa que tá ali atrás do computador, não tem culpa, ela não tem como mudar o sistema", comentou Rafael. 

Outro obstáculo que eles enfrentaram com o filho pequeno foi em relação aos banheiros públicos, pois no masculino não havia trocador para as crianças e precisavam chamar a gerência para esvaziar o banheiro feminino e trocarem o filho, ou então com a agenda da escola, que pedia o nome do pai e da mãe.

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"Quando a dona da escolinha conseguiu colocar filiação ao invés de nome do pai e da mãe, porque ela ainda demorou para fazer essa alteração, a gente fez uma festa, tirou foto, publicou nas redes sociais. São pequenas coisas que vamos fazendo e que causam mudanças", diz Rafael.

Reservados na vida pessoal, Lucimar e Rafael não lembrar de sofrer nenhuma homofobia explícita e já prepararam o filho desde cedo para o preconceito que ele vai enfrentar por ter dois pais. "Desde quando ele começou a entender, explicamos para ele da adoção, porque não tinha como não ser adotado vindo de dois pais. Desde sempre, o João sabe que tem dois pais, e a gente explicou para ele assim: 'Filho, você vai ouvir que seus pais são p**o, que seus pais são gays'. A gente já falou isso para ele não se ofender com esse tipo de comentário, muito pelo contrário, para ele se orgulhar", conta Lucimar.

"Tenho dois pais e tenho orgulho deles. Vejo eles como meus pais, não preciso de uma mãe, eles já são uma família perfeita para mim. Não preciso de mais alguém para interferir na minha família", diz João.

"Parece que a nossa vida começou a partir da adoção do João, a gente tem poucas lembranças de antes. A vida ficou mais feliz, mais colorida, mais divertida", conclui Lucimar.

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O que diz a lei sobre a licença-maternidade para homens?

Paulo Iotti, presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, define como um "tema um tanto em aberto na jurisprudência" a busca de pais em relacionamentos homoafetivos pelo mesmo período de licença que é concedido as mulheres após terem um filho. O advogado explica que já viu diferentes decisões serem tomadas na Justiça, mas critica a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de conceder licença-maternidade para apenas uma das mães em relacionamentos homoafetivos e entende que isso pode afetar também casais formados por dois homens.

"Só uma terá uma licença-maternidade e outra terá que ter a licença-paternidade, atualmente menor, por analogia ao casal heteroafetivo, imagino que o mesmo será aplicado a casais de homens, até que o STF decida de outra forma."

Iotti defende que a licença-maternidade é um direito da criança "ter esse convívio mais intenso e tão essencial na primeira infância para formação da personalidade". O advogado também ressalta a importância de mudar o nome das licenças para licença-parentalidade, "desvinculando o maior tempo de cuidado da criança a pessoa de um sexo ou gênero".

"Criar uma licença-parentalidade com igual tempo de convivência entre pai e mãe com a criança recém-nascida é da maior importância, tanto para fins de igualdade entre homens e mulheres nas relações heteroafetivas, como para a integral proteção da criança, com absoluta prioridade, pela convivência nessa primeira infância com mãe e pai" endossa.

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É importantíssimo reconhecer que o estereótipo da heteronormatividade não deve se aplicar a casais do mesmo sexo. Até porque essa 'diferença de funções' de mãe e pai em tempo de convivência não devia nem existir para casais de sexos opostos. Então, com máximo respeito e eterna gratidão ao STF porque, sem ele, nós da população LGBTQIA+ continuaríamos como párias sociais, sem direito nenhum, espero que ele evolua em nova decisão sobre licença-maternidade e paternidade entre casais do mesmo sexo. Quando você apresenta novos dados não considerados ou mostra danos sociais não considerados pela decisão anterior, é admissível dogmaticamente que ele decida de outra forma em qualquer tema", conclui Iotti.

Fonte: Redação Terra
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