Buscava na literatura curar a criança ferida dentro de mim, diz autor LGBTQIA+ com mais de 100 mil livros vendidos

Pedro Rhuas diz que sucesso se deve a identificação e a 'cura de feridas' que sua obra proporciona: 'Sinto que venci'

20 jun 2024 - 11h12
Pedro Rhuas é autor de 'Enquanto eu não te encontro' e 'O mar me levou a você'
Pedro Rhuas é autor de 'Enquanto eu não te encontro' e 'O mar me levou a você'
Foto: Divulgação/Olga Gonzalez

Autor de narrativas que trazem clichês que a comunidade sexodiversa merece viver na ficção, Pedro Rhuas é um fenômeno da literatura LGBTQIA+. Em três anos de carreira, o autor já vendeu mais de 100 mil livros. O motivo de tanto sucesso, o escritor potiguar não sabe dizer ao certo, porém, ele afirma, que "queria ter lido livros como os meus quando era adolescente. Isso que me motivou a escrever".

"Crescer sem ter histórias como a minha nos livros que eu tanto gostava de ler, acendeu um fogo de mudança gigantesco dentro de mim", diz.

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Além disso, Rhuas salienta que durante a produção de sua primeira obra, Enquanto eu não te encontro, viveu um processo de cura interior dos traumas causados por um abuso sofrido na infância. "Eu buscava através de uma literatura igualmente divertida, colorida e leve curar a criança ferida dentro de mim, uma criança que achava que não merecia amor", afirma. "Eu queria, com os meus livros, acolher esta criança e dizer que ela é linda, que merece ser abraçada e querida por quem ela é".

Com suas obras publicadas pela Editora Seguinte -- selo jovem da Companhia das Letras --, Rhuas deduz  que o frisson em torno de sua obra é devido a identificação dos leitores, e, também, a cura dos males causados pela LGBTfobia. "Por serem cura para mim, meus livros também se tornaram cura para outros. Essa é a fonte do êxito".

Na conversa, o autor de 28 anos conta ainda um pouco sobre sua trajetória com a literatura, iniciada aos 15 anos com a leitura das Crônicas de Nárnia. Além disso, ele tratou de suas motivações para compor trilhas sonoras para os livros, e de seus projetos futuros.

Leia abaixo a íntegra da entrevista concedida com exclusividade ao Terra, que trata, dentre outros temas, dos desafios e orgulho de ser LGBTQIA+ no Brasil.

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Terra: Quando surgiu esse seu gosto pela literatura e escrita?

Pedro Rhuas: Meus pais são artistas, então sempre tive contato com a literatura. Mas foi o presente de aniversário que ganhei de uma tia que fez esse amor crescer. Lembro até hoje do dia em que recebi o volume único de As Crônicas de Nárnia. Quando comecei a ler, fui transportado para um universo fantástico, que deu o pontapé para oficializar meu "namoro" com os livros.

Fui construindo minha relação com a literatura aos poucos, saindo da obrigatoriedade dos livros didáticos, e fazendo minha própria curadoria. Tudo de forma leve e intuitiva, até eu chegar no ensino médio, quando fui aprovado no Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), e conhecer meus amigos que também são apaixonados por livros. Juntos construímos um clube de leitura, e, paralelamente, fiz o meu primeiro site literário, chamado O Livreiro, aos 15 anos.

Esse site era um portal de notícias e de resenhas literárias. Naquela época, fechei parcerias com as principais editoras do Brasil, e, aos 17 anos, recebia em média 30 livros por mês, além de ter uma equipe colaborando comigo. A escrita nasceu nesse intervalo, entre jogos online que incentivavam a minha criatividade, blog e clube de leitura. Foram tantos livros lidos e resenhas que é impossível não dizer que isso impactou fortemente no escritor que me tornei.

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Terra: Você acha que os LGBTs precisam contar mais as suas histórias?

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Rhuas: A comunidade LGBTQIA+ é historicamente marginalizada. Uma literatura com protagonismo LGBTQIA+ amplamente divulgado, sensível e diverso como pautamos hoje é um processo recente quando comparo às décadas e séculos de opressão -- que não cessaram. A invisibilidade e a violência estrutural constroem narrativas próprias difíceis de desvencilhar. Narrativas que, tantas vezes repetidas, por tempos nos distanciaram de nosso potencial. O que chegava até nós eram os noticiários com a morte e a violência.  Se não éramos estatísticas nas páginas policiais, éramos meras caricaturas, estigmas, alívios cômicos e estereotipados partindo das canetas de pessoas que não pertenciam à comunidade e que não raro nos tratavam como chacota.

No Brasil, em 2023, 257 pessoas LGBTQIA+ foram assassinadas. Precisamos contar nossas histórias. Precisamos estar em livros, novelas, filmes, séries, debates nos jornais, ter nossa própria bancada no Congresso. Quando visualizo a importância de uma produção queer, forte e bem estabelecida no Brasil, eu visualizo como uma reparação histórica a todos os anos de silenciamento, como a perseguição na Ditadura Militar e a falta de acesso aos lugares da política.

A arte é um lugar propício para a nossa contação de histórias, para a retomada das nossas vozes. Ainda precisamos sair do armário todos os dias. Se não, logo nos voltam a fechar nele. Então, é de uma importância gigantesca que a gente paute na arte a retomada da nossa voz. 

Terra: Uma boa narrativa comove, tira do comodismo. Você acha que seus livros podem proporcionar isso?

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Rhuas: Com certeza, uma das ferramentas de opressão é o isolamento. Quando não nos visualizamos e não conseguimos nos reconhecer enquanto comunidade, também não conseguimos encontrar estratégias para nos fortalecer no coletivo.

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Hoje, a literatura jovem com protagonismo LGBTQIA+ não se esconde. Está nas livrarias, entre os livros mais vendidos e sucessos no TikTok. Pessoas de todo o País podem alcançar essas obras, até pouco tempo atrás escondidas ou nem sequer publicadas.

Meus livros tocam em assuntos sérios, mais do que as histórias em si, destaco a comunidade que é criada em torno delas. Como a naturalização dos nossos afetos na literatura contribui para o processo de aceitação dos leitores. Como eles se integram e formam amigos, mesmo que à distância, online. A cena da literatura LGBTQIA+ brasileira oferece casa, lar para milhares de jovens. Ao se encontrar com essas narrativas, eles se sentem mais fortes para gritar ao mundo quem são, sem medo, e isso é transformador.

São frequentes as mensagens que recebo de leitores: ‘li Enquanto eu não te encontro e me assumi para os meus pais’; ‘li seu livro e pude finalmente entender quem eu sou’; 'li O mar me levou a você e entendi que, como um garoto trans, eu também posso ser amado'. Essas narrativas dão coragem. Ajuda jovens a perceberem que quem eles são não é errado, que merecem amar e existir. Esta literatura não está transformando apenas a nossa sociedade, mas todos os micros e os macros mundos que existem nela.

Terra: Como você se sente com essas pessoas que te falam que saíram do armário após ler seu livro?

Rhuas: É emocionante. Eu queria ter lido livros como os meus quando era adolescente. Isso que me motivou a escrever. Não me via representado. Não achava dois garotos ou duas garotas se beijando de mão dadas na capa de um livro exposta em uma livraria. Crescer sem ter histórias como a minha nos livros que eu tanto gostava de ler acendeu um fogo de mudança gigantesco dentro de mim. Receber essas mensagens é como se o meu eu do passado fizesse vários novos amigos, que não teve lá atrás. É como se cada criança e jovem LGBTQIA+ que me dizem ‘Pedro, por meio de seus livros, eu me assumi para os meus pais’ fossem irmãos, amigos e companheiros de luta, de vivência, de sonhos. Então, é mágico poder inspirar e mostrar para elas que não estão sozinhas. Talvez seja meu propósito, minha missão.

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Terra: Seus livros são repletos de cultura POP, isso é para o público criar maior identificação?

Rhuas: Eu queria que Enquanto eu não te encontro, meu primeiro romance ambientado em 2015 com um protagonista desastrado apaixonado pela Katy Perry, fosse uma cápsula do tempo. O livro contém expressões que eu falava com os meus amigos, memes da época e referências pop em geral. Eu não imaginava que seria publicado por uma grande editora ou que seria um best-seller. Simplesmente escrevi para mim, para o futuro Pedro de 80 anos que, ao folhear aquelas páginas, será transportado para o passado, se conectando com a própria juventude e sonhos. Mas é bem divertido que mais de 100 mil pessoas tenham tido acesso à essa máquina do tempo mirabolante!

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Claro, a identificação é importante. Mas no Enquanto eu não te encontro, não tinha uma visão de público consistente, porque eu não tinha um público. Acho que, em muitos sentidos, Lucas, o protagonista, era uma versão minha. Uma versão que ganhou seus próprios contornos com o tempo, claro. Mas, ainda assim, uma versão. Tínhamos vivências, metas e sonhos muito parecidos.

Exemplo: o maior sonho dele é assistir ao show da Katy Perry no Rock in Rio de 2015, mas não consegue. Diferente dele, eu fui na apresentação, minha família me ajudou a pagar o ingresso e a passagem de avião. Soube que a Katy está voltando ao Brasil. Sabe o que eu quero fazer? Eu quero encontrar a Katy Perry pessoalmente e entregar uma cópia de Enquanto eu não te encontro para ela. Preciso mostrar que aqui, no Brasil, temos um best seller em que ela é a grande diva da história. Acho que não tem isso em nenhum outro lugar do mundo.

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Terra: Seu livro salta as páginas de papel e ganha vida nas redes sociais, e, até, no Spotify, Como foi isso?

Rhuas: O jovem está conectado em todos os lugares: no Tik Tok, no Instagram, no Twitter, no Spotify, no YouTube... Um trabalho intenso nas redes foi preciso para o livro fugir a bolha, e a música foi outro caminho. Sempre vi filmes e séries com uma trilha sonora original, mas espera aí: e um livro? Por que não ter sua própria trilha sonora?

Enquanto eu escrevia, Enquanto eu não te encontro, de 2016 até 2020, descobri algo completamente chocante: eu tinha uma voz. Diferente da literatura, que me atravessava desde a infância, a música foi uma construção recente. Quando comecei a produzir a trilha sonora de Enquanto eu não te encontro, me vi em uma jornada que expandia o material original do livro com uma experiência musical.

Algumas canções são inspiradas nos meus próprios corações partidos, em sonhos e expectativas. Enquanto eu não te encontro, de certa forma, é uma metáfora, até hoje, da minha busca pelo amor. Já O mar me levou a você é uma explosão de verão, de mar, da conexão com oceano e com os sinais do Universo.

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Terra: A que você acredita que se deve o seu sucesso?

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Rhuas: Nossa. Acho que... Bom, sinto como se fosse tudo um grande presente do Universo, especialmente porque minha carreira deslanchou diante de um despertar espiritual. O que me levou, por exemplo, a amar a Katy Perry na adolescência foi o colorido dela. Isso me ajudou a escapar de sombras e de uma escuridão que existia dentro de mim. Uma escuridão que nascia na dor, comum a tantos jovens, de ter sido vítima de abuso sexual quando criança. Enquanto eu não te encontro foi escrito no período que eu adentrava cada vez mais em mim e buscava a minha própria cura, enfrentando os traumas desse abuso e suas ramificações na minha vida, na minha conexão com a arte e outras relações. Eu buscava, através de uma literatura igualmente divertida, colorida e leve, curar a criança ferida dentro de mim, uma criança que achava que não merecia amor. Eu queria, com os meus livros, acolher esta criança e dizer que ela é linda, que merece ser abraçada e querida por quem ela é. Que não foi culpa dela. Para os leitores, talvez isso não seja óbvio.

Por serem cura para mim, meus livros também se tornaram cura para outros. Essa é a fonte do êxito. Hoje, saber que histórias que escrevi servem de farol para muitas pessoas, que é ajuda, acolhimento e amor, me faz sentir que de fato venci.

Terra: Ser nordestino e LGBT te fechou alguma porta na sua carreira?

Rhuas: A primeira porta fechada foi a porta nem tão imaginária da minha imaginação que, sem exemplos de publicações queers, nordestinas e jovens, achava que eu não conseguiria publicar Enquanto eu não te encontro. A falta de diversidade no catálogo das grandes editoras era um empecilho estrutural que me repelia. Eu julgava impossível ser publicado!

Por meio de um Concurso Literário lançado pela Editora Seguinte — selo jovem da Companhia das Letras —, que buscava obras escritas por pessoas que pertencessem às minorias que retratavam, consegui ser publicado. Com o concurso, a editora reconhecia a necessidade de expandir seu catálogo e incluir novas vozes.

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Eu venci o concurso e obtive um sucesso imediato com Enquanto eu não te encontro. Um sucesso que abriu portas para mim. Mas as portas seguem fechadas para muitos escritores queers, nordestinos, nortistas. Parece que, às vezes, servimos para bater uma meta de diversidade dentro das empresas. E, quando essas metas são batidas, já não há espaço. Se o "diverso" não vende, é muito mais provável que leve um chute na bunda.

Outras portas que se fecham são as portas das escolas, que raramente adotam títulos com obras com temática LGBTQIA+ em seus currículos. Às portas fechadas em casa, quando nossos livros são queimados pelos pais. Já recebi mensagem dizendo: ‘minha mãe descobriu que seu livro é de temática LGBTQIA+ e ela o queimou’.

Quando situações assim acontecem, sou lembrado da importância desses títulos; e por que é essencial para a laicidade do Estado e à democracia que nossas obras sejam escritas, lidas, apoiadas e publicadas. E é preciso mais coragem para se falar sobre gênero e sexualidade dentro das escolas do Brasil.

Tem algum novo projeto em vista? Conta pra gente?

Rhuas: Neste exato momento, eu estou escrevendo dois livros de uma vez só! Não posso falar muito dessas histórias. Uma delas está sendo bastante desafiadora. Com certeza, vou continuar trazendo narrativas com protagonismo LGBTQIA+ e voltadas para o público jovem. Estou extremamente animado para compartilhar essas narrativas com o mundo.

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Fonte: Redação Terra
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