“Essa Casa sistematicamente fecha as portas para a população LGBTQIA +”, dizia num tom entre a revolta e o abatimento o senador Fabiano Contarato (PT-ES). “Mas não só para essa população”, enumerava contando nos dedos: “como para mulheres, pretos, pardos, indígenas e assim sucessivamente”. Numa terça-feira de abril, o senador nos recebeu para essa entrevista em seu gabinete, em Brasília. Antes de começarmos, foi logo alertado por seus assessores de que com a agenda apertada não teria mais do que 15 minutos para a conversa.
Sem muitos rodeios e com educação, o senador rebateu dizendo que a pauta lhe era cara e estava à disposição para responder a todos os nossos questionamentos sobre a relação entre política e pautas da comunidade LGBTQIA +. Com nenhuma pressa ou interrupção, a entrevista se estendeu por 40 minutos.
Primeiro senador assumidamente gay, antes de chegar ao Congresso fez carreira como delegado de trânsito e de meio ambiente por 26 anos. Elegeu-se pela primeira vez pela Rede, em 2018, com 1,1 milhão de votos, 254 mil a mais do que Marcos do Val (Podemos-ES), que teve 863 mil. De quebra, barrou a reeleição de outro bolsonarista e ultraconservador, Magno Malta (PL-ES). Em dezembro de 2021 se filiou ao PT e liderou a bancada no Senado entre janeiro de 2023 e fevereiro de 2024.
Talvez por ter trabalhado por tantos anos com aplicação de leis e como professor de Direito Penal, Contarato reiteradas vezes embasa suas respostas em citações literais de leis, artigos e incisos.
“O artigo 3º, inciso IV da Constituição Federal tem como um dos fundamentos promover o bem de todos e abolir toda e qualquer forma de discriminação. Mas quando você faz uma retrospectiva dos direitos da população LGBTQIA+ em consonância desse dispositivo com o Artigo 5º que diz que todos somos iguais perante a lei, independentemente da raça, cor, etnia, religião, origem, orientação sexual, pessoas com deficiência, você vê que, infelizmente, no Brasil, uns são mais iguais que outros”, disse.
Católico, o senador faz uma divisão objetiva da atuação parlamentar e de sua fé: “na política eu sigo a Constituição”. Partindo desse entendimento, o petista defende que a atuação de um senador deve ser ampla, olhando para os diferentes segmentos da sociedade. O que não significa deixar de lado as bandeiras pelas quais milita.
“Logo no início do meu mandato, em 2019, consegui no governo Bolsonaro uma coisa inédita aqui, a iluminação do Congresso pelas cores do orgulho LGBTQIA +. Aquilo foi de um simbolismo muito forte na minha vida, com meu filho e com meu esposo”, disse.
O parlamentar vê que há um desafio enorme para obtenção de direitos iguais no país, já que assim como seus aliados do Congresso, gasta mais tempo e energia em manter direitos conquistados e evitar retrocessos do que em avançar.
Uma iniciativa de autoria dele que foi adiante foi o projeto de lei que proíbe a discriminação de doadores de sangue com base na orientação sexual.
“Outro dia, conversando com alguns senadores, falando de casamento de pessoas do mesmo sexo. Eu falei: ‘isso já existe, eu tenho uma certidão de casamento. O que que custa colocar isso na lei?’ Não to pedindo para casar na igreja, não estou falando de casamento religioso”, relembrou com alguma indignação.
“Isso vai impactar na vida das pessoas, em casos de falecimento, de quem vai ficar na vocação hereditária. Às vezes é uma população LGBT que foi expulsa da própria casa e quem vai receber [a herança] vai ser aquele irmão que praticava até mesmo homofobia contra aquele jovem, aquela jovem”, protestou.
Eu ainda ocupo um lugar privilegiado, sou homem, branco e sis. Tenha você um filho ou filha trans
Bancada reaça
Quando questionei sobre os grupos que atuam no Congresso alimentados à base de conservadorismo e moralismo barato, o senador discorreu sobre a atuação, não só do Senado, mas do Estado que, rotineiramente, reitera todas as formas de preconceito e descriminação.
“Infelizmente aqui, tenta se desqualificar uma pessoa pública ou pela orientação sexual ou pelo sexo. Na CPI da Covid, vários senadores se exaltaram, nenhum foi chamado de descontrolado. Uma senadora, Simone Tebet (MDB-MS), foi chamada de descontrolada”, lembrou.
Nessa mesma CPI, em 2021, o congressista protagonizou uma cena memorável. Durante depoimento do empresário bolsonarista Otávio Fakhouri, Contarato expôs uma postagem dele próprio em que havia comentários homofóbicos do depoente.
O senador Omar Aziz (PSD-AM), que presidia o colegiado, pediu que Contarato assumisse a presidência da sessão para fazer seu pronunciamento.
“Orientação sexual não define caráter. Cor da pele não define caráter. Poder aquisitivo não define caráter. A mesma certidão de casamento que o senhor tem, eu também tenho. E aí fala em Deus acima de todos? Deus está no meio de nós. O senhor não sabe a dor que eu sinto”, disse Contarato durante a CPI.
Foi justamente sua certidão de casamento que usou para rebater um ataque homofóbico. O documento, repare, é o mesmo que citei acima, que o senador citou anos depois como exemplo na conversa com colegas congressistas. Esse episódio ilustra um pouco da realidade vivida por grande parte da comunidade LGBTQIA +, que, diariamente, enfrenta os mesmos e repetidos ataques e preconceitos.
Dois anos e meio depois do episódio na CPI, o senador relembrava a tensão do momento.
“Até o último momento não sabia se devia falar ou não. Porque é você se despir, desnudar publicamente para falar o óbvio”, disse com a certeza de que fez o certo.
STF contramajoritário
“Assim como Martin Luther King teve um sonho, eu também sonho que eu não vou ser julgado pela orientação sexual”, contou citando o ativista dos direitos civis estadunidense.
Ao contrário do que propagam abertamente bolsonaristas e - nos bastidores, uma parcela de parlamentares de centro e de esquerda - Contarato diz com tranquilidade que o Supremo Tribunal Federal não interfere na competência do Congresso.
O senador elencou uma série de medidas determinadas pelo STF para que fosse cumprida a Constituição na busca de direitos iguais. São decisões que passam pelo o direito à adoção, casamento entre pessoas do mesmo sexo, redesignação sexual, nome social, declaração de imposto de renda conjunto, recebimento de pensão, criminalização homofobia e doação de sangue.
“Todas essas conquistas se deram pela via do poder Judiciário. Agora, por que que isso acontece? Por que nós, efetivamente, não enfrentamos esses temas de forma responsável para dar efetividade, vida, vez e voz a essa garantia constitucional?”, questionou.
Qual a representatividade, efetivamente, dos pobres. Da população LGBTQIA+, dos pretos, dos pardos, dos indígenas?
Em seguida, discorreu sobre o papel de cada órgão: “Nós representamos o poder majoritário. O STF tem outro papel, ser contramajoritário. Tem que ter o poder para invalidar leis ou regras que violem a própria Constituição Federal”, disse.
O que é família?
O posicionamento firme e irredutível sobre direitos iguais se estende à criação dos filhos, dos quais falou com carinho por diversos momentos.
“Se você for na minha casa e for dar um presente para minha filha de fogãozinho ou panelinha eu não quero aquele presente. Não quero. Isso é uma forma de você manter a mulher naquele espaço. Quero que ela tenha autonomia. Se ela vai ser ou o que ela vai ser, não quero saber, quero estar do lado dela”, afirmou.
Boa parte dos temas que abordamos na entrevista são defendidos fervorosamente por bolsonaristas no Congresso: religião, liberdade de escolhas, garantia de direitos e família. Mas os reacionários o fazem como uma visão distorcida e excludente da de Contarato. Não por acaso, o lema da campanha derrotada de Jair Bolsonaro (PL) tinha a aspiração fascista: Deus, Pátria, Família e Liberdade.
Logo que encerramos a entrevista, o senador fez questão de mostrar a foto da família que tem na estante de seu gabinete. Ele pegou o porta-retrato nas mãos e instantaneamente seus olhos marejaram. Percorrendo o dedo sobre a imagem apontava indicando o marido, Rodrigo Groberio, e os dois filhos, Gabriel e Marina: “Não são lindos? Tem como não dizer que isso é uma família?”.