"Com todo desejo e paixão, veio a culpa e o medo da minha mãe descobrir. Era paixão, admiração e construção, mas uma dor, pois o relacionamento só existia da porta de casa para fora: na rua, na universidade, nos happy hours", relata a terapeuta ocupacional e mulher bissexual, Andressa Leite Bertoldo, sobre a culpa que sentia durante um dos relacionamentos que teve com outra mulher.
- Este é o segundo episódio da série de reportagem O Brasil também é LGBTQIA+, que retrata a diversidade e as disparidades do País a partir de histórias da comunidade de Norte a Sul. Leia também o primeiro, o terceiro, o quarto e o quinto episódio.
Ela é moradora de Brasília, no Distrito Federal, a unidade federativa com mais pessoas autodeclaradas homossexuais ou bissexuais, que representam 2,9% de sua população, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Ainda que more no estado brasileiro com mais pessoas com orientação sexual igual à dela, o que poderia sugerir uma maior facilidade em se encarar como bissexual, Andressa, hoje com 29 anos, recorreu a ajuda profissional para conseguir lidar com o namoro. "A culpa era um peso imenso. Fiz acompanhamento psiquiátrico e psicológico. Não de conversão, nem para entender minha sexualidade, mas para exorcizar essa culpa", conta.
Segundo o IBGE, 94,8% da população adulta do Brasil -- ou seja, 150,8 milhões de pessoas -- identificam-se como heterossexuais, portanto têm atração sexual ou afetiva por pessoas do gênero oposto. Ao todo, 1,2%, o equivalente a 1,8 milhão, declaram-se homossexual, e tem atração por pessoas do mesmo gênero. E 0,7%, ou 1,1 milhão, declara-se bissexual e tem atração por mais de um gênero.
Os dados presentes na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada pelo IBGE em 2019 e divulgada em 2023, eram inéditos até ano passado, já que o órgão nunca havia coletado essas informações até então. Ao Terra, a assessoria de imprensa do IBGE informou que o órgão "está atento" às estatísticas de pessoas homossexuais ou bissexuais e explicou considerar os censos demográficos uma ferramenta inadequada para coletar esse tema.
Para o instituto, "a informação é muito íntima para ser captada junto a terceiros", já que a pessoa entrevistada pelo recenseador fornece dados sobre os demais ocupantes daquele domicílio. Por isso, pesquisas como a PNS seriam mais indicadas.
Depois do Distrito Federal, o ranking dos estados com mais pessoas autodeclaradas homossexuais ou bissexuais segue com Amapá (2,8%), São Paulo, Amazonas e Rio de Janeiro (2,3% cada). Olhando novamente para o Centro-Oeste, Mato Grosso do Sul tem 2% de sua população homossexual ou bissexual, ocupando a 6ª posição na lista nacional. Os outros dois estados da região, Mato Grosso (1,4%) e Goiás (1,2%), aparecem nas posições 19ª e 24ª do ranking, respectivamente.
Andressa conta ter ouvido de diversas pessoas próximas a ela que sua bissexualidade seria apenas uma fase, o que ela descreve como uma invisibilização de sua existência. A terapeuta ocupacional afirma levar uma "vida comum de uma mulher trabalhadora, que no final de semana só quer tomar uma cervejinha em um espaço seguro e acolhedor para mim e meus amigues".
Mas, segundo ela, todas as vezes em que esteve em um relacionamento com outra mulher, sentiu receio em demonstrar afeto em espaços públicos, ainda mais se estivessem sem um grupo de amigos por perto. "E quando falo de demonstração de afeto, falo desde andar de mãos dadas, dar um abraço ou um beijo. Medo do apontamento, medo da violência verbal", explica.
Se você for branco, gay e de classe média alta, o DF pode ser menos hostil com você. Se você for preto, pobre e LGBTIQA+, o DF pode ser um lugar bastante hostil - Andressa Leite Bertoldo
Natural de Brasília, o psicólogo Lemuel França Porto, de 34 anos, mora hoje em Águas Claras, também no Distrito Federal, e é gay. Apesar de se sentir seguro na maior parte do tempo, ele também vê o avanço de pautas ultraconservadoras como perigoso para a população LGBTQIA+, mesmo num estado com concentração de pessoas homossexuais e bissexuais maior que no restante do Brasil.
"Eu acho que os próximos anos vão ser muito desafiadores. A gente conquistou muitos direitos civis, que são recentes, mas a gente tem que continuar nessa batalha para mantê-los e conseguir outros. Os retrocessos têm vindo com tudo", diz Lemuel.
Nos locais que frequenta, ele diz não sentir ameaças físicas. Ainda assim, acredita que o preconceito talvez aconteça de outras maneiras. "E eu entendo que também podem ter vivências muito diferentes das minhas", completa. O psicólogo cita a Parada LGBTQIA+ de Brasília, uma das maiores do Brasil como um exemplo importante "para mostrar que a gente existe".
A gente vive a realidade de que o fundamentalismo religioso tem nos podado muito. (...) Sinto falta de algum tipo de ação, de evento que alcance, por exemplo, as crianças nas escolas, para desenvolver uma nova geração muito mais aberta, entendendo sobre a diversidade, as diferenças - Lemuel.
"A gente tem (no DF) coletivos e organizações que fazem uma atuação, mas, na ponta, são poucos os coletivos que entregam ações de atendimento direto", explica Pedro Gustavo Fernandes Matias Pereira, coordenador-geral da Casa Rosa, um lugar de acolhimento, convivência e assistência à população LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade no Distrito Federal.
Localizado no bairro de Sobradinho, o local atende moradores do DF e seu entorno. De acordo com a instituição, este é o único espaço que realiza um serviço deste tipo em todo o Centro-Oeste.
Todos os dias, a Casa Rosa recebe solicitações de acolhimento de pessoas LGBTQIA+. Para Pedro, nos últimos anos houve um avanço muito grande de discursos fundamentalistas que afetam diretamente as relações familiares.
"Nosso público de atendimento majoritário para o acolhimento são pessoas jovens, entre 18 e 25 anos, que foram expulsas de casa ou estão na iminência de sair de casa, porque estão sofrendo algum tipo de violência dentro daquele ambiente familiar. Então, a gente vê isso acontecer mesmo à medida também que a gente tem essa questão (do aumento) das autodeclarações", relata Pedro.
No DF, uma outra estatística chama a atenção: 4,9% das pessoas que participaram da pesquisa não quiseram responder à questão feita pelo IBGE sobre sua sexualidade ou não sabiam como se declarar. Essa porcentagem é uma das mais altas no Brasil, atrás apenas das de Rondônia (6,4%), Piauí (6,3%), Pará (5,7%), e Mato Grosso do Sul (5,5%).
A recusa em expor a orientação sexual é um sinal de que o assunto ainda é estigmatizado, avalia o doutor em Linguística e mestre em Direitos Humanos e Democracia, José Ricardo Menacho, professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat).
"O silêncio produz sentidos e significados. A relutância em não responder trata-se de medo, incômodo, insegurança em declarar a sua própria existência”, explica José Ricardo, que também é assessor de Gestão de Formação da Pró-Reitoria de Ensino de Graduação da Unemat e pesquisador na área de diversidades e cidadania.
Em um contexto de alto grau de conservadorismo no Centro-Oeste e no Brasil, José Ricardo entende que o confronto a essas visões conservadoras é necessário para promover um ambiente mais inclusivo e seguro para pessoas LGBTQIA+.