Quem vê as manifestações do Mês do Orgulho LGBTQIA+ pode até achar que o Brasil é um País que oferece boas condições a pessoas da comunidade. Mas basta uma rápida olhada nas estatísticas para nos questionarmos se há algum tipo de progresso, principalmente com relação à comunidade trans e travesti. Isso porque, além de ser por 14 anos seguidos o País que mais mata pessoas trans no mundo, o Brasil também não dá oportunidades para aquelas que sobrevivem.
- 90% da população trans no Brasil sobrevive da prostituição, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA);
- Apenas 0,2% dos estudantes em universidades públicas federais são trans, sendo que a população trans no Brasil chega a 2% do total, de acordo com a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).
Dados como esses foram lembrados por Victória Napolitano, 27, em entrevista ao Terra. Além de trazê-los para serem debatidos, Victória subverte-os todos os dias.
Mulher trans, cada passo dado em sua trajetória é um novo espaço sendo ocupado, do ambiente familiar à sua posição no mercado de trabalho como coordenadora de Diversidade, Equidade, Inclusão e Bem-Estar na empresa Pismo, uma fintech - como são designadas as empresas que buscam inovações no mercado financeiro por meio da tecnologia.
Ao se apresentar, Victória faz questão de destacar dois pontos sobre si, antes de falar sobre o lado profissional: ela é casada e madrasta.
"Acho que é uma coisa bem curiosa, porque eu vejo que ainda é bem raro pessoas trans ocuparem esses espaços de parentalidade", afirma.
Sem formação concluída no ensino superior, a carreira de Victória começou a se desenvolver a partir de um intercâmbio para a Irlanda. "Foi um privilégio que eu tive, né, ue muitas pessoas não tiveram acesso. Eu pude não somente aprender o inglês, mas tive contato com várias culturas e muitas experiências que me formaram como eu sou hoje", conta.
Apesar de afirmar que se tratou de um privilégio, Victória conta que conseguiu realizar o sonho de morar fora impulsionada por desavenças familiares. Ela juntou o dinheiro do FGTS de seu antigo emprego, economias antigas e uma ajuda do pai, para então partir rumo a outro País.
Lá, se encontrou trabalhando com eventos no centro de convenções de Dublin, capital irlandesa. Mas, depois de dois anos, teve que voltar ao Brasil, para acessar os serviços de saúde com menos burocracia e de forma gratuita.
Aqui, em 2018, Victória participou do Women Will, uma iniciativa do Google para treinar e inspirar mulheres. Naquele ano foi criada a primeira turma de mulheres transgêneras, em parceria com a Transempregos e a RME, com capacitações para incluir mulheres trans no mercado de trabalho. Para ela, bom, funcionou.
"Essa ação foi a porta de entrada, foi o networking que eu precisei para entrar no mundo corporativo", diz. Através do projeto Transempregos, conseguiu sua primeira oportunidade na área de tecnologia, na empresa SumUp.
"Foi lá onde eu consegui me desenvolver, onde eu tive pessoas, mentoras e patrocinadoras pela minha carreira", lembra. Em alguns meses, conseguiu uma promoção e foi chamada para o time global de diversidade e inclusão, onde reportava para uma profissional da Alemanha.
Depois disso, em 2021, veio o convite para trabalhar na fintech Pismo, com o desafio de desenvolver do zero a área de diversidade e inclusão. Hoje, Victória consegue conciliar o trabalho com uma faculdade à distância em Relações Públicas.
O que é diversidade e inclusão nas empresas
Em uma breve síntese, o papel de Victória na empresa e do time que ela coordena é elaborar ações que sejam capazes de aumentar a diversidade de colaboradores na empresa. Isso inclui processo seletivo, contratação e o dia a dia de trabalho, para assegurar que o ambiente será amigável para aquele colaborador. Na prática, o trabalho acaba sendo bem mais complicado.
Apesar dos esforços de Victória nesse um ano e meio, os dados mais uma vez lutam contra ela. A empresa é formada majoritariamente por homens brancos heterossexuais. Dos colaboradores, 26% são mulheres, 22% são pretos ou pardos e apenas 5% são LGBTQIA+, segundo levantamento feito em setembro do ano passado.
Os percentuais estão longe dos almejados por ela.
"A nossa meta é ter 50% de mulheres. A nossa meta da Pismo é representar a sociedade onde a gente opera, e hoje, no Brasil, a gente tem mais de 50% de mulheres na população", afirma.
Para Victória, a maior dificuldade, porém, está na própria área em que a empresa está inserida. Isso porque, mesmo com as ações de vagas afirmativas, muitas vezes há vagas que precisam de um grau maior de especialização, o que acaba atingindo uma parcela específica da sociedade.
Mas ela garante que não vai desistir. "Até a gente alcançar isso, não descansaremos", diz.
Entre as ações da empresa está uma parceria uma ONG internacional que visa capacitar meninas, principalmente em situação de vulnerabilidade, na área de tecnologia. "A gente está dando esses passos, e a gente espera colher esses frutos logo", afirma.