'Nesta escola não há machos': LGBTfobia e conservadorismo impedem avanço de diversidade na educação

Mesmo com taxa em queda, Rio Grande do Sul é o Estado com mais escolas com projetos sobre questões LGBTQIA+

26 jun 2024 - 05h00
(atualizado em 28/6/2024 às 16h12)

"Só pode ser aquele viado. Não levarei este boletim dessa forma para casa. Nesta escola não há machos". Foi o que  o pai de um aluno de uma escola em Bom Princípio, cidade do Vale do Caí, no Rio Grande do Sul, disse ao professor de língua portuguesa Rafael Backes. O xingamento ocorreu por causa do descontentamento com a nota que o filho recebeu em uma prova.  

Professor é gay e atua no estado do Rio Grande do Sul
Professor é gay e atua no estado do Rio Grande do Sul
Foto: Arquivo pessoal/Rafael Backes
  • - Este é o terceiro episódio da série de reportagem O Brasil também é LGBTQIA+, que retrata a diversidade e as disparidades do País a partir de histórias da comunidade de Norte a Sul. Leia também o primeiro, o segundo, o quarto e o quinto episódio.

Rafael, que é homossexual assumido para a família desde a adolescência, conta que o caso ocorreu em 2015. "Pensei inúmeras vezes em desistir de lecionar, mas a ajuda de muitos alunos, alunas, amigos, amigas, minha mãe e meu pai fizeram com que eu continuasse a levantar a bandeira pela educação, pois é através dela que conseguiremos melhorar o nosso país e, principalmente, as pessoas”, pondera o professor. 

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Ainda com histórias como a de Rafael, o Rio Grande do Sul é o estado brasileiro onde há o maior índice de escolas que têm projetos de temática LGBTQIA+. Ainda assim, a taxa de escolas gaúchas que tratam do assunto em sala de aula caiu, segundo o Observatório Nacional dos Direitos Humano (ObservaDH), plataforma Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), de 37,20% em 2019, para 29,90%, em 2021, último ano com levantamento disponível.

Em Santa Catarina, também houve diminuição. A variação foi de 30,50%, em 2019, para 22,20%, em 2021. O Paraná não havia enviado dados em nenhum dos anos, um dos poucos estados sem informações. 

Sobre projetos contra a LGBTfobia em escolas, o Terra fez contato com as Secretarias de Educação dos três estados do Sul e com o Ministério da Educação (MEC), mas ainda não obteve retorno.

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Para Rafael, é urgente falar sobre questões LGBTQIA+ para "desconstruir essa cultura" de intolerância contra a comunidade. "Nunca sofri nenhuma intolerância por parte de estudantes, mas por parte de equipes diretivas, várias vezes", afirma, ao destacar a origem do preconceito. 

Infelizmente, muitas vezes, o preconceito parte de quem deveria ser exemplo. Normalizaram-se discursos de ódio e de aniquilamento de tudo o que se considera como 'desviante' do padrão - Rafael Backes

Enquanto o assunto demora a engatar, outros professores que tentam abordar a temática LGBTQIA+ continuam a ter problemas dentro e fora de sala de aula. Uma intervenção artística com cores do arco-íris, realizada durante um trabalho de final de semestre por uma turma de ensino fundamental em Rio Negrinho, em Santa Catarina, repercutiu tão negativamente que fez o professor coordenador das atividades mudar de cidade, com medo das ameaças que sofreu. 

Projeto de final de semestre coloriu escadas com cores usadas pela comunidade LGBTQIA+
Foto: Arquivo pessoal

Os ataques homofóbicos sofridos pelo profissional começaram quando uma foto do trabalho foi parar nas redes sociais. Em 2021, quando o caso ocorreu, o docente de artes atuava havia poucos meses na escola municipal de Rio Negrinho, no Planalto Norte de Santa Catarina.

No projeto, estudantes coloriram uma escadaria do colégio com as cores utilizadas pela população LGBTQIA+. O grupo também colou papéis com palavras como "bissexual" e "gay", referências à população LGBTIQA+. Por fim, o último papel dizia: "Sou humano".  

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O trabalho sofreu críticas de grupos religiosos, além de deputados e vereadores catarinenses, que acusaram o projeto de doutrinar estudantes para "virarem" LGBTQIA+. 

Ao Terra, o professor, que pediu para não ter sua identidade revelada, disse ainda sentir medo de voltar a abordar assuntos ligados à comunidade LGBTIQA+ em sala de aula, mesmo passados quase três anos do ocorrido. Ele continua lecionando, mas não mais na cidade em que o episódio aconteceu.

"Resolvi ir embora, apesar de ter consciência que não fiz nada errado. Todos os ataques sofridos e perseguições diversas me fizeram e fazem mal. Infelizmente, até hoje não abordei a temática (de diversidade) novamente. Sinto muito receio e medo de vivenciar novamente aquele pesadelo. Não descarto abordar novamente a temática, mas é algo que levará muito tempo", relata ele. 

O medo irá me acompanhar e confesso, por vezes, me assombrar em cada escolha pedagógica ou aula que irei planejar - professor catarinense

De acordo com a advogada que o representa, Jéssica Diane Bail, um dos agressores ainda está sendo investigado pelo Ministério Público pelo crime de homofobia. Há, também, uma ação por danos morais que foi proposta contra o investigado.  

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"As leis penais não darão conta de tudo enquanto ainda formos um dos países que mais viola e mata a população LGBTQIA+. Entendo que a legislação e a criminalização de condutas não serão suficientes, enquanto a sociedade em geral não criar consciência e respeito genuíno", disse. 

Intervenção artística revoltou conservadores em Santa Catarina
Foto: Arquivo pessoal

Para o professor da pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador do Centro de Estudos da Constituição, Leandro Franklin Gorsdorf, a sala de aula é um espaço de construção da cidadania e desempenha um papel de incentivo ao respeito a "regras indispensáveis à vida em coletividade".

"Por se tratar de um período de formação do sujeito e cidadão, tratar de tais temas em sala de aula permite a ampliação da discussão sobre o direito a ter direitos, sobre igualdade e diferença e direitos humanos”, explica.  

Ele também enxerga nas escolas um espaço de acolhimento e reconhecimento de jovens LGBTQIA+, "permitindo para muitos uma reflexão sobre seu modo de ser e aceitação da sua identidade e/ou orientação sexual. Um lugar de exercício da liberdade", completa.  

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Porém, ele acredita que o enfrentamento à homotransfobia em sala de aula só será possível se houver uma gestão escolar comprometida e com o envolvimento dos núcleos familiares na discussão. No recorte dos estados do Sul, apesar de existirem políticas públicas para a pauta de identidade de gênero e sexualidade nas escolas, o sentimento de insegurança do professor citado acima é frequente.  

O bolsonarismo se alimenta em criar narrativas que apontam as pessoas LGBTQIA+ como inimigos da família, e professores têm sido o principal alvo deste discurso - Leandro  

Em 2018, quando Jair Bolsonaro (PL) se elegeu presidente da república, 57,39% dos eleitores do Sul o escolheram. "A ação governamental sistemática de desestruturação das políticas de ensino público, a desqualificação e perseguição de professores e professoras em sala de aula e a privatização dos serviços públicos educacionais. Basta olhar para propostas como o Escola Sem Partido, as escolas cívico-militares, o homescholling (ensino doméstico), a privatização de serviços nas escolas, o Novo Ensino Médio, entre outros... este quadro geral fragiliza o papel de professores em sala de aula. Ele desestimula a efetivar práticas pautadas nas temáticas de identidade de gênero e orientação sexual", aponta Leandro. 

Fonte: Redação Terra
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