Em um tempo onde a diferença não tinha vez, as ruas de São Paulo conheceram uma "Poderosa Chefona" que tentou de tudo antes de seguir pela vocação na qual fez tanto sucesso: a marginalidade. Andréa de Mayo (1950-2000) foi sinônimo de muita coisa: agressão, exploração, prostituição, cafetinagem e chantagem. E algumas de suas vítimas sentem rancor até hoje.
Nascida em família humilde, Andréa de Mayo acompanhava a mãe faxineira em seu trabalho na TV, e foi nos bastidores da mídia, sob a imensidão do universo do entretenimento, que ela viu despertar a vontade de seguir carreira artística. Com o passar dos anos, trocou os sapatos que engraxava na ruas do Arouche, centro de São Paulo, pelos palcos.
Sua parada seguinte foi o 'Programa do Bolinha', mas, apesar do vozeirão, não prosperou. Era homem, mas feminino demais para aquele tempo.
Certa de sua transexualidade, e sem medo do que teria que enfrentar, fez a chamada "viagem da beleza". Em Paris, na França, se tornou Andréa de Mayo.
"Como no Brasil era proibida realização de cirurgias relacionadas à redesignação de sexo, elas [transexuais] viajavam para a Europa para colocar silicone e fazer o tratamento hormonal", explica Chico Felitti, que pesquisou a vida da travesti para o áudiolivro 'Rainhas da Noite'.
Rainha do underground paulistano
De volta ao Brasil, foi no underground paulistano que Andréa de Mayo viu a oportunidade de se realizar profissional e artisticamente. Com esforço e dedicação, ela atuou em algumas produções de baixo custo e até chegou a conquistar o papel de Geni na 'Ópera do Malandro', de Chico Buarque, na montagem de 1979.
"Ela foi a primeira a interpretar a personagem, isso é honrável demais", acrescenta Felitti.
Militante dos direitos LGBT, passou a ser convidada constantemente para participar de programas de televisão, como os concursos de transformistas promovidos por Silvio Santos e o 'Programa Livre', apresentado por Serginho Groisman. Neste último, protagonizou um emblemático debate com Afanásio Jazadji, político que era crítico assumido de pessoas LGBTs e chegou a declarar que os homossexuais deveriam ser afastados do convívio social.
Apesar de importantes para o movimento LGBT, as participações não custeavam a vida de Andréa.
"Se nem emprego para pais de família existia nos anos 70, imagina para uma transexual", observa.
Na tentativa de ganhar a vida e sem ser aceita em lugar algum, Andréa de Mayo teve que recorrer ao "submundo". A vida noturna de São Paulo era um lugar glamuroso, mas perigoso, dominado pelas histórias que corriam pela bocas das "meninas" e dos homossexuais sobre a cafetina transexual Jacqueline Blá-blá-blá.
"A fábrica de fazer dinheiro"
Dura na queda, alta e de aparência machuda, Andréa de Mayo chantageou, agrediu e amendrontou muita gente para ser respeitada entre as profissionais do sexo do centro de São Paulo. Com a "taxa" que cobrava das meninas, começou a empreender. De acordo com Chico Felitti, existem relatos que a Poderosa Chefona possuía mais de 15 apartamentos em seu nome.
Com essa gama de imóveis, Andréa criou sua própria fábrica de fazer dinheiro, ou melhor, sua própria família. Sob uma boa premissa, ela tirava as "meninas" da rua, as colocava para dormir em seus apartamentos, protegidas de marginais e dos agentes da Delegacia de Costumes, que costumavam enquadrar travestis por "vadiagem".
Mas Andréa também explorava as "filhas", como chamava. Cobrava delas lençol, comida, teto. Às vezes levava as meninas para Europa e as obrigava a colocar silicone e arcar com as passagens de avião, de modo, que elas nunca conseguiam quitar essas contas, muito menos sair da prostituição ou da casa da "mamãe".
Quando não mandava as "filhas" para o exterior, a própria Andréa fazia as vezes de "bombadeira" e aplicava silicone industrial de forma clandestina. Relatos denunciam que ao menos duas travestis morreram nas mãos dela.
Uma travesti de negócios
Os devedores não passavam ilesos a Andréa de Mayo. Quando não eram mortos, sobreviventes detalham agressões e facadas. Fato é que a mãezona nunca andava despreparada. De um lado, ela carregava um nunchaku, arma branca chinesa; no outro, estava seu fiel escudeiro, o pequinês de nome Al Capone.
Uma travesti de negócios, Andréa de Mayo se juntou a Valdemir Tenório de Albuquerque, o Val, para abrir a Val-Improviso, lendária casa de shows de travestis na Marquês de Itu, na região da Sé. O público da casa era diverso. Segundo Erika Palomino, jornalista da Folha de S.Paulo na época, Cazuza era um dos frequentadores assíduos da casa e, quase sempre, terminava a noite numa roda de violão com quem se recusava a ir embora.
Anos depois, Andréa abriu sua própria boate, a Prohibidu 's, na Amaral Gurgel, região da República. Na casa, ela e garçons nus acolheram todos os públicos.
"Morreu sem bunda, como queria"
Apesar do histórico sombrio por trás da história, Andréa de Mayo tinha um lado filantrópico forte. Ela lutou contra o preconceito às pessoas LGBTs, ajudou instituições de caridade, distribuiu itens básicos em favelas, além de ter feito diversas doações generosas para a casa de caridade de Brenda Lee (1948-1996), militante transexual considerada o anjo das travestis.
"Em um tempo onde muita gente morria de AIDS, ela contribuiu para que esse cenário se rompesse", conta o pesquisador.
Militante imparável e matriarca vigilante, Andréa foi cansando de se montar com o tempo. Soltar os cabelos e passar um mero batom se tornaram gestos e sinais de bom humor para quem convivia com ela. O silicone que havia aplicado em sua viagem a Paris, carinhosamente chamado de "um fusca em cada perna" pela própria, foi retirado. O bumbum avantajado também ficou para trás.
O que Andréa de Mayo queria era uma vida longe da noite e mais tranquila. Veio a descansar um dia após o procedimento de retirada do silicone no bumbum, possivelmente de embolia pulmonar. Como havia assinado um termo de responsabilidade a respeito do risco da cirurgia, as autoridades deram o caso por encerrado.
Logo ela, que sobreviveu a seis tiros na mão, braços e pernas, ordenado por um ex-namorado; que presenciou tiroteios e corpos jogados na calçada da badala Prohibidu's.
"Ela morreu como queria, sem bunda. O silicone já estava a incomodando", resume Felitti.
O "apagamento arquival"
Após sua morte, a história de Andréa de Mayo começou a sofrer o que Chico Felitti chama de "apagamento arquival". Apesar de ter feito sucesso no underground paulistano com seu nome social, toda a documentação médica e policial foi realizada em seu nome de batismo, Ernani dos Santos Moreira Filho.
Essa violência institucional criou uma série de lacunas de informação a respeito da vida da travesti. Ela realmente cometeu tais crimes? Por que não foram notificados? Qual o real tamanho de sua fortuna? Onde foi enterrada? Com qual nome foi enterrada? Do que, de fato, morreu?
"A história da Andréa é praticamente oral, existem poucos registros. Ela representa uma galera que tinha medo do sistema, medo de ser tapeado e extorquido por policiais ou funcionários de banco. Essas pessoas não faziam imposto de renda. Elas dormiam com dinheiro no colchão, compravam conversíveis e apartamentos com dinheiro vivo, à vista", explica Chico.
O que aconteceu a Andréa de Mayo após sua morte chama a atenção para um problema que afeta pessoas trans e travestis em geral. Afinal, para onde vão as pessoas trans depois que morrem?
Bruno da Mata, gestor de políticas públicas, pesquisadore e autor do trabalho 'O Significado do Nome', faz o esforço de responder:
"Elas simplesmente desaparecem. Como vivem à marginalidade da vida, deixam de existir, pois o estado não as contempla como realmente são", diz.
Sem direito ao luto
De acordo com da Mata, os cemitérios representam mais que um local fúnebre: é um reflexo da memória da cidade. Nele encontram-se todos os tipos de pessoas, cidadãos, família influentes, artistas, entre outras personalidades que marcaram aquela sociedade de alguma forma. No entanto, o serviço funerário ainda está longe de acolher todas essas histórias.
"Durante meu estudo, notei que as pessoas trans sofriam um tipo de silenciamento, pois quando morriam, apesar de ter o direito ao nome social, o sistema funerário as enterrava com nome civil. Ou seja, as pessoas trans simplesmente desapareciam da história da cidade. Se alguém quisesse levar uma flor no túmulo ou saber onde estava enterrada, não tinha como saber. Eles não tinham direito ao luto", acrescenta.
Em 2016, o serviço funerário paulistano deu início a uma ação de recuperação de memórias, com uma placa doada pelo professor Renato Cymbalista, da USP. Andréa de Mayo teve seu nome retificado.
"Apesar de a lápide constar o nome social dela agora, você ainda tem um atestado de óbito com o nome civil, os boletins de ocorrência com gênero masculino. Ou seja, tem uma série de protocolos e registros do Estado que vão apagando essas pessoas da história. Temos esse caso da Andréa de Mayo como exemplo, mas quantas pessoas trans foram sepultadas e ninguém sabe aonde está?", questiona da Mata.
Não tenha medo de Andréa de Mayo
A história da Poderosa Chefona é um relato de violência e criminalidade, tudo isso envolvido na teia de glamour e preconceito que era a vida noturna dos anos 70 e 80. No entanto, deve também ser reconhecida pela filantropia, pelo ativismo dos direitos LGBTs, mas, principalmente, pelo direito de ser lembrado.
De acordo com a psicóloga Jéssica Souza, pessoas com uma história semelhante à de Andréa de Mayo podem, sim, acabar recorrendo ao ilícito para sobreviver, como ela fez. Mas é importante não banalizar ou generalizar. Além disso, é importante entender que as pessoas não são apenas boas ou más e que sexualidade ou identidade não tem relação com a criminalidade.
"A história de vida de Andréa de Mayo corrobora para que ela talvez tenha deslocado todo seu repertório negativo de vida para esses atos criminosos. Porém as demandas pessoais dela, que implicaram nessa relação que ela desenvolveu com o crime, está longe de ser justificada por sua sexualidade", acrescenta.
*Com edição de Estela Marques