Em um piscar de olhos, as crianças têm o poder de se transformarem em seus ídolos, que podem ser heróis de cinema, atletas das Olimpíadas ou princesas da Disney. Basta nós, adultos, dispensarmos um olhar atento aos pequenos para percebermos que a imaginação infantil não tem muitas fronteiras e vai além dos endurecidos padrões sociais de gênero, que impõe, ainda hoje, rosa para mulheres e azul para homens.
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Dessa forma, proibir ou constranger um menino que assiste e se identifica com desenhos animados de princesa só reforça preconceitos e os impede de construir livremente sua identidade, como explica o especialista.
De acordo com o psicólogo Rômulo Lopes, doutorando em Psicologia Social da Universidade Estadual Paulista Júlio Prestes (Unesp), "há uma identificação dos meninos com essas personagens por encontrar nelas uma figura de apoio e referência no cuidado".
Para o acadêmico, dentre as diversas finalidades das animações ditas voltadas para os meninos está a de perpetuação dos padrões sociais de gênero, que, segundo ele, aprisionam o homem em um modelo.
"Há uma ideia de que os meninos deveriam se atrair por personagem que reproduzem o modelo de masculinidade, que é mais viril e com performance violenta", disse. "Seguindo está mentalidade, figuras que transmitem mais cuidado, afeto e revela vulnerabilidades deve ser evitada. Então, há uma certa contradição aí, pois estas narrativas promovem a imagem de um homem ideal que não existe, pois não é humana".
Questionadora destas rígidas normas, a corretora imobiliária Camila Araújo, mãe de Cesar Antônio Lima, de 3 anos, permite e incentiva que seu filho veja filmes de princesas, pois, para ela, os desenhos para meninos são muito violentos.
"Sempre tentei aflorar nele um lado mais doce e meigo. Por isso, acredito que, ele se reconhece nos desenhos das princesas. Meu filho se vê como um príncipe, que quase não aparece nas histórias, somente surge para dar um apoio nos momentos de apuros", disse. "Isso que ensino para o meu filho: ser um homem mais carinhoso e próximo. Criar uma pessoa menos violenta é o meu presente para o mundo", conta orgulhosa.
Sem qualquer relação com orientação sexual
Rômulo explica que como há uma expectativa de performance de gênero, há também uma expectativa social de orientação sexual. Segundo o especialista, não há nenhuma relaçao entre uma criança gostar de princesas e se tornar uma pessoa LGBT+ no futuro.
"Essa identificação como LGBT+ para uma criança é muito mais algo das outras pessoas. E vejo como uma violência de gênero, trata-se de uma necessidade do adulto em nomear e definir uma criança. Há um estranhamento, pois a criança está sendo chamada de 'sapatão' e de 'viado', mas nem sabe o que é isso, somente estava sendo criança. Brincar ou assistir algo não define orientação sexual de ninguém", afirma.
Além das princesas, o especialista explica que a identificação dos meninos com as chamadas divas Pop -- como Madonna, Lady Gagá, Beyoncé-- seguem o mesmo caminho. Para ele, não há necessariamente relação com homoafetividade.
"Estas mulheres podem trazer para alguns meninos acolhida, pois, enquanto elas performam, não há espaço para julgamento. Enquanto as 'divas' cantam e dançam, elas estão preocupadas com seu desempenho, o julgamento alheio fica em segundo, ou até terceiro, plano".
Identificação que atravessa os anos
Apaixonado por A Pequena Sereia desde criança, o jornalista João Pedro Voltarelli, de 27 anos, afirmou que sua identificação com a animação foi instantânea e somente na fase adulta pôde encontrar os motivos de tamanha admiração pela narrativa.
"Era algo inconsciente. A história trata de um não pertencimento da personagem principal no meio em que está inserida e da busca dela para alcançar a felicidade. Isso, na verdade, falava muito de mim sem eu saber", partilha.
"A Ariel tem tudo no mar, inclusive uma família bem estruturada, mas ela não se sente completa ali. Hoje, crescido, me pego refletindo sobre a história e, para mim, acaba entrando muito na questão de sexualidade. Lá atrás, não sabia que era, mas me sentia incompleto também", revela. "Nós dois queríamos mudar o cenário que vivíamos, com o objetivo de alcançar a própria felicidade. Existem pessoas que dizem que 'ela largou tudo por causa de macho', mas, para mim, a história não é bem assim, porque antes de conhecer o príncipe, Ariel já queria ser humana".
Contudo, João pondera que no seu caso, a história teve relação com sua orientação sexual, mas isto não é regra, segundo ele. "A minha vivência é essa, mas sei que têm outras crianças que tem forte relação com animações de princesas e que não tem nada a ver com sexualidade. Não podemos colocar numa caixinha. Não é uma questão de menino e menina, mas de felicidade, satisfação, e coragem."
Quando criança, João desenhou um livro com a história de A Pequena Sereia. A obra foi encadernada pelo seu pai. Segundo o jornalista, sua família sempre apoiou e incentivou sua predileção pelo desenho, e esse debate de gênero e sexualidade passava distante.
"Como sempre gostei muito do filme e da história em si. Alugava muito na locadora, ao ponto de meu pai pedir que o estabelecimento gravasse uma fita para mim. Uma forma de economizar dinheiro", recorda.
E, se ainda existir alguma dúvida ou resistência sobre o tema para os pais, Rômulo Lopes recomenda uma maior presença a fim de esclarecer as dúvidas. "Uma boa coisa a se fazer, é brincar junto com a criança. Se interessar também pelo que a criança faz, se ela gosta de determinado personagem, sugiro assistir junto e conversar sobre esse personagem", recomenda.
"É preciso observar sob o prisma do desenvolvimento psicológico, analisando a importância desse interesse, pois o brincar também é poder experimentar algo que é diferente. Na infância, ocorre o desenvolvimento de várias funções psicológicas e habilidades sociais do ser humano, como a imaginação", completa Lopes.