SOMOS NÓS: “O gênero da pessoa nunca fez e não faz diferença para mim”, diz pansexual

Criado na zona rural do interior do Ceará, Samuel Pereira, 22, é uma pessoa pansexual e não-binária

29 jun 2023 - 05h00
Samuel se identifica como pessoa pansexual e não-binária
Samuel se identifica como pessoa pansexual e não-binária
Foto: Acervo pessoal

Minha história é meio complicada. Hoje em dia, eu olho para trás e vejo o quanto eu sofri. Eu moro no Ceará. Cresci e nasci aqui, em uma cidade bem pequena chamada Mombaça, onde o preconceito é presente e muito forte. 

Eu fui uma criança sem referências. Não sabia o que era ser uma pessoa LGBTQIA+. Nunca tinha visto um cara gay ou uma pessoa homossexual até uns 14, 15 anos. Até essa época, na minha cabeça isso nem existia, porque além de ter sido criado em Mombaça, fui criado no meio rural. O interior do interior de uma cidade pequena. 

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Até o 5º ano do ensino fundamental, minhas aulas aconteciam todas no sítio. Aquelas escolas rurais, sabe? Depois disso, eu precisei ir para a cidade para continuar os estudos. Nessa época, me mudei para a casa da minha tia e foi quando eu me apaixonei pela primeira vez, por uma menina. 

Aquilo, para mim, era uma via de mão única. Todas minhas referências giravam em torno desse tipo de relação. Foi uma coisa inocente e não correspondida. Era uma coisa de olhar de longe, admirar, de ficar observando o sorriso, a maneira como ela andava. Junto disso, comecei a sofrer bullying e ela foi muito importante durante esse processo. 

Esses episódios de bullying aconteciam porque eu era muito calado. Desde pequeno eu já sentia que era diferente dos outros meninos. Eu não tinha a mesma vontade de jogar bola, de ficar paquerando. Então eu sofria muito comigo e com meu entorno e fui me fechando cada vez mais. 

Quando eu saí do sítio e fui estudar na cidade, eu prometi para mim mesmo que ia me tornar mais comunicativo, fazer mais amizades, mas acabou acontecendo totalmente o contrário, porque eu percebi que as pessoas da cidade eram as mesmas pessoas do interior do interior. Lembro de uma situação que até hoje mexe muito comigo quando lembro.

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Samuel cresceu na zona rural de Mombaça, no Ceará
Foto: Acervo pessoal

Naquela época, o uso de uniforme era obrigatório na escola que eu estudava. Minha família me comprou um e a calça acabou vindo muito justa, não sei porquê. Então, teve um dia que eu estava indo para a escola e, enquanto passava em frente a uma construção, me jogaram um pedaço de concreto e gritaram: ‘Anda direito’. Quando eu cheguei na escola, a primeira coisa que eu fiz foi entrar no banheiro e chorar.

Eu não entendi o motivo daquilo. Eu não tinha feito nada. Não tinha gritado, xingado. Só estava andando na rua e indo para a escola. Essa situação permaneceu na minha cabeça durante muito tempo. Eu acabei não falando para minha família, porque tinha receio do que iriam pensar sobre mim. Depois disso, acabei desenvolvendo uma depressão. Foi a cereja do bolo, sabe? 

Eu não tinha vontade de fazer nada. Não sentia vontade de comer, ir ao banheiro, sair da sala de aula, fazer as atividades. Teve semanas que passava dias seguidos sem me alimentar. Eu chegava em casa e ia direto para o quarto, deitava na cama e dormia. Eu queria que o tempo passasse muito rápido.

No ensino médio, as coisas começaram a mudar. Comecei a conhecer outras pessoas LGBT e interagir mais. Os bullyings continuaram sim, mas o espaço era outro. A possibilidade de conhecer pessoas como eu, as trocas, foram muito importantes para mim.

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Lembro que nessa fase fui na minha primeira festa, uma festa de São João. Até hoje eu amo São João, porque aquela festa foi um divisor de águas para mim. Fui totalmente sem saber o que era uma festa, o que tocava, o que as pessoas bebiam. Me senti uma criança descobrindo o mundo e as possibilidades.

Foi nessa fase que me vi apaixonado por duas pessoas de gêneros diferentes e fiquei confuso comigo mesmo. Inclusive, uma dessas pessoas mora comigo atualmente em Caucaia, cidade maior do que a anterior, e é meu melhor amigo. Foi mais uma paixonite não correspondida, porque, afinal, ele é heterossexual, mas desenvolvemos uma parceria e foi a porta para eu começar a pesquisar mais sobre minha sexualidade.

No final do ensino médio, em 2019, eu estava pesquisando na internet e encontrei uma página no Instagram chamada “Vale dos Bi”, que abordava a bissexualidade. Hoje, infelizmente, ela não existe mais, mas foi muito importante para mim, porque tinha um post comparando a bissexualidade com a pansexualidade. Eu amei aquilo e até hoje tenho um print no meu celular, porque sempre gosto de relembrar.

Por um tempo, eu fiquei matutando essa questão. Daí quando foi no meio de 2020, eu me olhei no espelho e disse: ‘eu sou uma pessoa pansexual’. Parece que depois que eu disse essas palavras, me encarando, tudo fez sentido. Foi como se um filme passasse diante dos meus olhos e eu, de fato, tivesse me entendido. 

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A bissexualidade era definida como um conceito de sexualidade que gira em torno dos dois gêneros, masculino e feminino, enquanto a pensexualidade era definida como a atração por pessoas independente do gênero. E, para mim, o gênero da pessoa nunca fez e não faz diferença. Pode ser uma pessoa trans, agênero, não-binária, que a possibilidade da atração vai existir. Não é um fator determinante. O que me importa é a pessoa ser gentil comigo.

A partir desse entendimento, eu imaginei que tivesse pessoas como eu e que não conheciam essa orientação sexual. Foi quando decidi criar a página “Vale dos Pansexuais”, no Instagram, como forma de compartilhar toda informação que eu aprendia sobre a pansexualidade para outras pessoas que estavam se entendendo e buscando se informar. 

A página foi crescendo, crescendo e hoje em dia acho que eu não consigo viver sem ela. Ela teve um papel muito importante no meu processo de entendimento. Inclusive, foi a partir dela que também me descobri uma pessoa não-binária, porque acabei esbarrando com outras formas de existência e conhecendo diversos tipos de pessoas. 

Eu acho que minha família sempre percebeu que eu era diferente, porque sempre fui tratado com uma preocupação maior do que minhas irmãs. E olha que sou o mais velho. Minha irmã do meio é chamada de ‘filho homem do meu pai’, porque ela fazia tudo que era para eu estar fazendo com ele, tipo acompanhar ele nos jogos. 

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Quando me assumi para minha mãe, foi inesquecível. Minha irmã tinha achado uma saia xadrez no guarda-roupa dela e eu resolvi fazer umas fotos usando a saia. Mostrei as fotos para minha mãe e disse: ‘Mãe, vou postar essas fotos, o que você acha?’ e ela sem rodeios respondeu: ‘Tá lindo, pode postar’, com um sorriso no rosto. Na hora, só consegui dar um abraço nela, porque senti que minhas diferenças foram acolhidas. Foi uma sensação de alívio muito grande.

Fonte: Redação Terra
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