Vestindo um sobretudo de pelúcia com estampa de onça, um colar com franjas de correntes e olhos delineados, Majur deu uma entrevista exclusiva ao Terra em seu camarim na casa de shows Blue Note, na capital paulista. A artista havia acabado de se apresentar no TransBaile, primeira premiação feita por e para pessoas trans e travestis.
Despida dos entraves da popularidade, Majur nos recebeu com clima de descontração. Sem papas na língua, movida pela sensação de pertencimento que o evento proporcionava, falou sobre seu novo trabalho, sua relação com o Candomblé, ancestralidade e sobre seu atual momento de vida.
"Me sinto feliz, completa. Me sinto completa de mim mesma porque eu estou falando sobre a minha existência. E hoje, amor, eu acho que eu não preciso falar muita coisa. Basta olhar uma foto minha e todo mundo vai perceber o quanto eu estou feliz comigo mesma, com a minha imagem e com tudo que eu estou entregando."
No palco do evento, a sensação que Majur passava era justamente essa. Para além da entrega única em frente aos corpos que se comunicavam de forma singular e reconhecida, a artista declarava, ali, sua alegria consigo mesma através de sua performance corporal. Em determinado momento, a artista tornou isso claro através das palavras:
"Se sintam gratificadas irmãs. Se sintam gratificadas pelo o que vocês entregam, porque é foda lutar contra o sistema o tempo inteiro. Há um tempo atrás, eu nem existia. Aliás, nenhum de vocês existia. Mas eu quero lembrar que estamos aqui há muito tempo. Então vivam, irmãs. Sejam felizes e busquem o que fazem vocês felizes", aconselhou a cantora para o público presente no Transbaile, evento que visa premiar pessoas trans e travestis que se destacaram dentro da comunidade T.
"Arrisca"
Instigada pela vontade de fazer as pessoas vibrarem a energia de felicidade consigo mesma, Majur lançou recentemente o segundo álbum de sua carreira: Arrisca. Iniciado pela música Tudo ou Nada, o álbum comemora suas conquistas desde que despontou na cena musical em 2018, com o EP Colorir.
"Pra ser veloz / Tem que arriscar / Tudo ou nada / Já tentaram me parar / Esperei a falha / Vivem comparando / A beleza que não se compara / Se sua alma brilha / Não precisa invejar ninguém / No caminho da vida / Só a vida é que pode além", canta a baiana de 27 anos.
Com participações de Ivete Sangalo, Xamã e Olodum, Majur afirma que Arrisca também nasceu com a intenção de instigar pessoas trans e travestis a acreditarem em si mesmas.
"É muito difícil você pensar que é capaz dentro de um espaço de violência. Só que é possível sim. E aí eu digo: sim, pessoas trans, peguem, vivam as suas referências, procurem pessoas trans como referências, criem suas referências. Talvez não tenhamos tantas ainda, afinal, o mundo inteiro precisa viver essa transformação, mas as que temos são potentes e nós também podemos ser potentes depois delas. Então, amor, 'vambora'. É essa energia que eu trago nesse novo álbum", declarou a artista.
Força ancestral e espiritualidade
Se em Arrisca, Majur fala sobre a artista que se tornou símbolo da música popular brasileira, Ojunifé, seu álbum anterior, fala sobre sua construção pessoal e enquanto artista. É pedindo licença em iorubá, logo na primeira faixa Agô, que a cantora baiana avisa: Majur chegou.
"Ojunifé fala sobre minha construção enquanto Majur. E falar sobre Majur, é falar sobre os meus orixás, porque se não fosse eles, não seria possível me encontrar. Com os orixás eu aprendi a ser forte e que a força está dentro de mim mesma. Para além disso, eu entendi que meu corpo é único. É único para todos, todas e todes. Então, foi essa a essência que eu quis trazer", disse Majur.
Através de uma voz única e rimas que fogem do óbvio, a força que mora na presença da artista, nas músicas ou no palco, é algo inquestionável. Quando perguntada se há consciência sobre isso, a artista afirmou que sim, e disse saber de onde vem: da ancestralidade.
"Acredito que essa não é a primeira vez que venho à Terra. Não é a primeira vez que passo por aqui. Então, sim, as pessoas precisam entender que tudo o que elas veem, a energia que sentem, é algo ancestral e mais antigo que nós", afirmou Majur.
A relação da artista com a espiritualidade é clara não apenas em seu trabalho, mas até em seu nome. De acordo com ela, Majur foi um nome escolhido pelo seu orixá, Xangô, e quer dizer 'olhos do amor' em iorubá. De acordo com ela, sua trajetória e legado estão completamente associados a ‘algo maior’.
"Sinto que o meu corpo é uma ‘corpa’ real, que habita milhares de outras coisas e energias. Sinto que as bruxas me seguem, que Exú me segue e que as Padilhas me seguem para a construção de um legado que transforme a sociedade. Eu sou essa energia. Acredito que de onde eu vim, a história da minha família, tudo que trago é isso. Acho que vou viver o resto da minha vida para tentar transformar algo que não era existente em algo potente."
Transbaile
Questionada sobre a sensação de vivenciar e se apresentar na primeira edição do Transbaile, evento criado por pessoas trans e que visa premiar pessoas trans, Majur afirmou que a premiação representa um "progresso, apesar de uma tentativa de retrocesso".
"A gente veio de uma tentativa de retrocesso em quatro anos, né? Sim, retrocedemos em alguns pontos, mas eu não consigo acreditar que demos um passo para trás. Para mim, o governo Bolsonaro foi um momento de uma maior resistência, mas nós já estamos acostumados a resistir", declarou.
Para a artista, que lembrou a existência de pessoas trans em cargos políticos, na televisão e no jornalismo, o Transbaile é um evento que representa um "progresso".
"É um momento de transformação dessa sociedade e quando eu falo de transformação não é que a gente vai ver o resultado agora. Eu sinto que talvez em dez anos a gente presencie isso de forma bombástica, mas hoje nós vemos meninas de dezoito, treze, quatorze anos aceitando seus corpos dissidentes e isso, para mim, é um progresso e estar aqui, hoje, é parte desse progresso", declarou.
"A gente consegue hoje juntar várias mulheres trans influentes no mesmo lugar para falar, celebrar a gente e a nossa vida, algo que precisa ser feito porque nossas vidas quase nunca são celebradas", concluiu a artista.