Pelé alimentou sonho de Brasil potência e projetou negros no mundo, diz autor

Para Marcos Guterman, autor do livro 'O futebol explica o Brasil', sucesso do jogador se entrelaçou com expectativas de que país deixaria de ser marginal

30 dez 2022 - 05h39
(atualizado às 08h31)
Depois do que Pelé fez na Copa de 1958, ninguém mais ousou contestar a presença de negros na seleção, diz o jornalista Marcos Guterman
Depois do que Pelé fez na Copa de 1958, ninguém mais ousou contestar a presença de negros na seleção, diz o jornalista Marcos Guterman
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Quando Pelé brilhou na conquista de sua primeira Copa do Mundo, em 1958, o Brasil vivia uma lua de mel consigo mesmo, diz à BBC News Brasil o jornalista Marcos Guterman.

Autor do livro O futebol explica o Brasil, Guterman conta que o país vivia grande efervescência cultural: a bossa nova, um ritmo brasileiro, conquistava ouvidos mundo afora, e a construção de Brasília projetava ao mundo uma nação que queria deixar de ser marginal.

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No futebol, o otimismo com o futuro do Brasil era ainda mais antigo: remontava à Copa de 1938, na França, quando a seleção terminou em terceiro lugar, até então seu melhor desempenho no torneio.

"Em 38, o Brasil surpreendeu o mundo e talvez a si mesmo, e surgiu daquela Copa como o país do futebol, abraçou o futebol definitivamente como seu esporte nacional, carregando as esperanças do Brasil de deixar a periferia do mundo para ir ao centro, com seu potencial de crescimento e tudo mais", diz Guterman.

Ele afirma que o Brasil pretendia sediar a Copa seguinte, de 1942, mas os planos só foram concretizados em 1950, já que duas edições do torneio foram canceladas por causa da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

"O Brasil fez o Maracanã em tempo recorde e tinha uma ideia de país que poderia deixar de ser marginal, deixar de ser eternamente colônia para se tornar protagonista, e o futebol foi o veículo dessa afirmação nacional", afirma Guterman.

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Com a classificação do Brasil para a final do torneio, a profecia parecia perto de se realizar. Mas a vitória não veio: num dos eventos mais traumáticos da história do esporte brasileiro, a seleção perdeu o último jogo do campeonato para o Uruguai, por 2 a 1.

A derrota ganhou até apelido, Maracanaço, em referência ao estádio que recebeu a partida.

O resultado golpeou o ufanismo nacional, diz Guterman. Mas mais do que isso: a derrota gerou reações racistas entre a população.

Seleção brasileira na Copa de 1958; Pelé é o terceiro, da esquerda para a direita da foto
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Em O Negro no Futebol Brasileiro, clássico da literatura esportiva nacional, lançado em 1964, o jornalista Mário Filho diz que Barbosa, Juvenal e Bigode - três atletas negros - levaram injustamente a culpa pela derrota do Brasil na final.

"Os negros padeceram muito nesse período de caça às bruxas. Alguns diziam que havia negros demais na seleção, o que condenava o time ao fracasso", diz Guterman.

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Quatro anos depois, poucos negros foram convocados para a seleção que jogou a Copa de 1954. Visualmente, aquele time lembrava as primeiras equipes brasileiras a disputar torneios de futebol, nos anos 1910 e 1920, quando vários jogadores eram filhos de imigrantes europeus.

Até que um jovem de 17 anos chamado Pelé foi convocado para a seleção que disputaria a Copa de 1958, na Suécia.

"Pelé tinha acabado de começar no Santos e foi grande protagonista na Copa, fazendo um gol espetacular na decisão e sendo coroado como rei do futebol - primeiro pelo (escritor) Nelson Rodrigues e, depois, pelo mundo", diz Guterman.

Depois do que Pelé fez na Copa de 1958, ninguém mais ousou contestar a presença de negros na seleção, conta o jornalista.

Para Guterman, Pelé representa "uma espécie de redenção dos negros na seleção brasileira" - mas também uma redenção dos negros brasileiros em geral.

O jornalista lembra que, além de ter sido o primeiro a conceder o título de "rei" a Pelé, Nelson Rodrigues exaltou a identidade negra do atleta.

"Nelson Rodrigues africaniza o Pelé, não trata o Pelé como um cara qualquer, ele é um negro africano com toda sua majestade, como se fosse um príncipe africano", diz.

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Não que Pelé tenha sido o primeiro negro a se destacar no futebol brasileiro - antes dele houve craques como Leônidas da Silva e Friedenreich, por exemplo.

"Mas nenhum teve a dimensão do Pelé, ele claramente projeta a raça", diz Guterman.

Para o jornalista, Pelé parecia evitar a associação entre ser negro e ser bom de futebol
Foto: AFP/Getty Images / BBC News Brasil

Mas o sucesso de Pelé não foi capaz de pôr fim ao racismo no Brasil - além de, paradoxalmente, ter reforçado a noção de que o esporte é um dos poucos meios para a ascensão dos negros no Brasil, diz Guterman.

O próprio Pelé, segundo o jornalista, se incomodava com essa associação.

"Ele sempre foi muito cobrado por não ter abraçado a causa negra como, por exemplo, o (boxeador americano) Mohammed Ali, mas me parece que ele a evitou porque não queria reforçar a associação entre ser negro e ser bom de futebol. Ele era bom, ponto, e ser negro não fazia diferença", diz.

Da mesma maneira, as três Copas que o Brasil ganhou quando Pelé era profissional (1958, 1962, 1970) não foram acompanhadas por uma ascensão do país ao rol das potências globais, diz Guterman.

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"Naquela época realmente acreditávamos que dava pra desenvolver 50 anos em 5, como dizia Juscelino Kubitschek. Daí veio 1964", diz o jornalista, referindo-se ao golpe militar que manteve o Brasil sob um regime ditatorial até 1985.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64122265

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