“Você conhece alguma coisa humana não nomeada?”. Quem lança a pergunta é uma ativista pelos direitos LGBTQIA+ e que está a frente de uma casa de acolhimento em São Bernardo Campo. “A importância de ter um nome? A importância de ter uma vida. O nome define sua vida. Eu sou Neon Cunha, mulher negra, ameríndia e transgênera. Nessa ordem de importância.”
Ter um nome é um direito tão básico que sequer há uma referência a isso na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completou 75 anos no último dia 10 de dezembro. Mas o direito de existir e viver com dignidade já aparece de cara no primeiro artigo. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”, diz o texto.
Neon aprendeu bem jovem que precisaria lidar com o racismo, a discriminação, a violência de gênero e a transfobia. Ao fazer parte de um grupo que tem uma expectativa média de vida de 35 anos, Neon também aprendeu com a morte.
“Uma coisa que me marcou muito ao longo da vida foi que todas as minhas amigas foram enterradas de uma forma que eu nunca reconheci. Se eu tivesse que procurar hoje essas pessoas em uma lápide, eu jamais teria acesso. Porque as famílias requereram, porque o Estado requereu. Algumas foram como indigentes, outras as famílias ‘limparam essa sujeira’ que elas fizeram. Limparam seus nomes enterrando o morto. Não a morta”, relata.
Foi assim que Neon pediu para morrer. Ela entrou com um processo na Organização dos Estados Americanos (OEA), em 2014, para ter o direito de ser reconhecida como mulher. Foi ao limite. Pediu que, caso a sua existência, expressa no gênero e no nome, não fosse reconhecida, queria a autorização para uma morte assistida.
“Quando é que você percebe que não dá mais para viver sobre a condição do outro, sobre a condição imposta? Qual era a estratégia de sobrevivência? Porque eu nunca fui lida como homem. Eu me dei conta que eu não tinha nada mesmo”, conta a ativista sobre a decisão de levar a frente o processo.
Neon relata que foi expulsa de casa em 1992. “Aconteceu tudo o que tinha que acontecer com uma pessoa trans. Mas eu perdi mais o quê? O que não vai ter é esse nome [masculino] na lápide. Eu abri o processo, pedi uma morte assistida e denunciando também, mais uma vez, o Brasil nesse crime que ninguém conseguia nomear, que ninguém conseguia expor. Eu não falo nem de transfobia, eu falo de cissexismo. Essa ideia de que o gênero da pessoa cis é mais legítimo do que a pessoa trans”, explica.
Com a vitória, retificou o nome e o sexo sem precisar fazer cirurgias de redesignação de sexo. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) é de 2018 e abriu caminho para que homens e mulheres trans tivessem acesso ao mesmo direito.
“Transição? Todo mundo está em transição. A pessoa sai de feto, de feto para bebê, de bebê para criança e olha que estou só usando os termos neutros que cabem à primeira infância. E depois que se desenvolve para adolescente e depois para uma idade adulta. Eu não estou falando nem de gênero. Eu estou falando de uma transição humana. Transição está posta o tempo todo. Mas só essa determinada categoria de pessoas que reivindicam outro processo humano que é exigido o reconhecimento.”
Conquistas
A população LGBTQIA+ tem conquistado avanços na sociedade brasileira: o direito à união entre pessoas do mesmo sexo, o direito à retificação de sexo e o direito de adoção de filhos. No Brasil, essas decisões estão vinculadas, geralmente, ao Poder Judiciário. Na política, o Brasil elegeu, em 2022, as duas primeiras deputadas federais trans.
Para Marcos Tolentino, historiador e ativista, a Constituição de 1988 abriu o caminho. “A inspiração da Constituição de 88 em relação à Carta da Declaração Universal de Direitos Humanos é justamente buscar essa ideia de uma cidadania que é de todas as pessoas, de todos os setores sociais que estão no Brasil e, a partir disso, prever algumas especificidades”, aponta.
O historiador acrescenta que com a Constituição brasileira começam a ser previstas algumas especificidades, como direito de gênero, direito de povos indígenas e direito de pessoas negras. “Por entender que são grupos, são pessoas, são setores sociais que já vinham desse processo de exclusão de direitos.”
Mas ainda há muito a avançar. Há 14 anos o Brasil lidera o ranking dos países que mais matam pessoas trans. Em 2022, foram 131 pessoas assassinadas, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Vinte pessoas tiraram a própria vida em razão da discriminação e do preconceito.
“Toda vez que eu acesso esse lugar do direito humano, eu fico perguntando quando ele vai ser pleno para nós. E essa plenitude é justamente pelo que vou lutar. Eu vou lutar por políticas públicas, vou lutar enquanto ativista, vou disputar a política institucional, vou. Mas vai ser pleno? Toda vez que eu penso nisso, nessa questão de direito à humanidade plena, eu espero que um dia essa humanidade entenda que trans é um código de liberdade”, propõe.
Edição: Aline Leal