A aprovação pela Câmara dos Deputados da urgência de um projeto de lei que equipara o aborto acima de 22 semanas -- inclusive em casos autorizados por lei -- a homicídio gerou uma onda de protestos no país, nas ruas e nas redes sociais, e a reação pode terminar por adiar o texto, mesmo com a urgência.
Convocados na manhã de quinta-feira, os protestos conseguiram reunir no mesmo dia centenas de pessoas na Avenida Paulista, em São Paulo, no centro do Rio e em cidades como Brasília, Manaus, Recife e Florianópolis. Um outro está sendo convocado para a tarde de sábado, na Avenida Paulista.
O assunto também mobilizou as redes sociais, em postagens majoritariamente contrárias, com hashtags como "Criança não é mãe" e "bancada do estupro", acusando os parlamentares que defendem a proposta.
O texto, apresentado pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e subscrito por cerca de duas dezenas de outros parlamentares, equipara o aborto a homicídio simples, com pena de seis a 20 anos, quando o feto tem mais de 22 semanas.
O projeto não exclui da penalidade casos de estupro, que hoje são permitidos por lei. O que faz com que, na prática, a vítima de estupro, se fizer o procedimento acima de 22 semanas, tenha uma pena maior que a de seu estuprador, que chega a um máximo de 10 anos.
A urgência do projeto foi aprovada por votação simbólica, depois de o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), colocar a proposta em pauta esta semana, mas a reação foi mais forte que o esperado.
Fonte próxima a Lira ouvida pela Reuters diz que não há intenção do parlamentar de colocar o texto em votação em breve, como desejava a bancada evangélica. Apesar da urgência, o texto só tranca a pauta da Casa quando é colocado para votação.
O presidente da Câmara também já avisou que o texto como está não deve ficar. A intenção dele seria nomear uma mulher, não ligada a bancada evangélica, para fazer o relatório.
Se for aprovado na Câmara, o texto precisa ainda passar pelo Senado, onde tem menos chance de prosperar.
O presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), já indicou que a proposta não terá vida fácil no Senado e se declarou contrário à idéia de que o aborto possa ser comparado a um homicídio simples.
"O que eu devo dizer é que uma matéria dessa natureza jamais, por exemplo, iria direto ao plenário do Senado Federal. Ela deve ser submetida às comissões próprias e é muito importante ouvir, inclusive, as mulheres do Senado, que são legítimas representantes das mulheres brasileiras, para saber qual é a posição delas em relação a isso", defendeu.
Criticado pela posição passiva em relação ao projeto, o governo começou a reagir. Questionado sobre o tema em Genebra, onde estava para uma conferência da Organização Internacional do Trabalho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que só falaria sobre ao voltar para o Brasil e se inteirar do assunto.
Cobrada por não ter se manifestado rapidamente, a primeira-dama Rosângela da Silva, escreveu nas redes sociais nesta sexta-feira que a proposta é "um absurdo e retrocede" no direito das mulheres.
"A cada oito minutos uma mulher é estuprada no Brasil. O Congresso poderia e deveria trabalhar para garantir as condições e a agilidade no acesso ao aborto legal e seguro pelo SUS", escreveu.
O ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, deixou claro nesta sexta que o governo é contrário à proposta.
"O presidente Lula sempre disse que nunca faria qualquer ação para mudar a legislação de aborto no país. E a postura continua a mesma. Não contem com o governo para mudar a legislação de aborto no país", disse. "Ainda mais em um projeto que estabelece que a mulher estuprada vai ter uma pena duas vezes mais que o estuprador. Não contem com o governo para essa barbaridade."
Segundo Padilha, o Congresso tem hoje mais de 2 mil projetos com urgência aprovada que nunca foram a plenário, e a orientação aos líderes será para que a proposta não seja votada.